Infância Abrigada: negligências e riscos no campo das políticas públicas. Crianças e jovens do século XXI


Lílian Rodrigues da Cruz

Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC
(Brasil)


Resumo

As práticas psicológicas na assistência social e na saúde constituem-se em um eixo de problematização no campo da Psicologia. Objetivamos discutir as políticas públicas no campo da infância, centrando-se na aplicação das medidas protetivas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente. Neste sentido, a “negligência dos pais” tem despontado como motivo de ingresso mais freqüente em entidades de abrigo, suscitando discussão entre os operadores de direitos. Constatamos que a negligência está muito associada às dificuldades socioeconômicas e que as famílias pobres parecem ser culpabilizadas pela situação dos seus filhos. Nas avaliações de negligência, questiona-se também a efetividade das ações preventivas em saúde mental, uma vez que a literatura aponta dificuldade de discernir entre situações de pobreza e sofrimento psíquico dos pais. Nesse sentido, propomos fomentar as discussões acerca das negligências: da articulação das políticas públicas, das instituições, dos operadores de direito, dos técnicos e “dos pais”.

Palavras-chave: Negligência. Políticas públicas. Infância. Abrigagem.

 

Infancia Abrigada: negligencias y riesgos en el campo de las políticas públicas

Resumen

Las prácticas psicológicas en la asistencia social y en la salud se constituyen en un eje de problematización en el campo de la Psicología. Objetivamos discutir las políticas públicas en el campo de la infancia, centrándonos en la aplicación de las medidas protectivas previstas en el Estatuto del Niño y del Adolescente. En este sentido, la “negligencia de los padres” ha despuntado como motivo de ingreso más frecuente en entidades de abrigo, suscitando discusión entre los operadores de derechos. Constatamos que la negligencia está muy asociada a las dificultades socioeconómicas y que las familias pobres parecen ser culpabilizadas por la situación de sus hijos. En las evaluaciones de negligencia, se cuestiona también la efectividad de las acciones preventivas en salud mental, una vez que la literatura apunta dificultad en discernir entre situaciones de pobreza y sufrimiento psíquico de los padres. En ese sentido, proponemos fomentar las discusiones acerca de las negligencias: de la articulación de las políticas públicas, de las instituciones, de los operadores de derecho, de los técnicos y “de los padres”.

Palabras clave: Negligencia. Políticas públicas. Infancia. Abrigaje.

 

Um pouco da legislação sobre a abrigagem

Através da Constituição da República Federativa do Brasil (1988) vários dispositivos legais foram estabelecidos para inibir as arbitrariedades do Estado sobre o cidadão. Para a proteção dos direitos da criança, a Lei impôs a regulamentação do artigo 227. “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito: à vida; à saúde; à alimentação; à educação; ao lazer; à profissionalização; à cultura; à dignidade; ao respeito; à liberdade; à convivência familiar ou comunitária. Além de colocá-los a salvo de toda forma de: negligência; discriminação; exploração; violência; crueldade; opressão” (Brasil,1988). A partir deste artigo originou-se o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Importante dizer que as discussões sobre a temática da infância tiveram influência direta das normativas internacionais, uma vez que as principais inovações foram incorporadas pelo novo sistema. O documento normativo de maior relevância, nesse âmbito, é a Convenção sobre Direitos da Criança de 1989, que incorpora finalmente a Doutrina da Proteção Integral e que repercute como novo paradigma a ser incorporado pelas legislações internas dos países, processo esse ainda não concretizado plenamente. Esta Doutrina afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade de especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadoras da continuidade do seu povo, da sua família e da espécie humana e o reconhecimento de sua vulnerabilidade, o que torna as crianças e os adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atuar através de políticas específicas para o atendimento, promoção e a defesa de seus direitos (Brasil, 1990).

O ECA foi sancionado a partir da articulação de lideranças do setor público e da sociedade civil organizada, principalmente através de entidades não-governamentais de defesa dos direitos da criança e do adolescente. O Estatuto estabeleceu o caminho para a intervenção popular nas políticas de assistência e sobre as diretrizes da política de atendimento: criação de conselhos municipais, estaduais e nacionais dos direitos da criança e do adolescente, órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federais, estaduais e municipais. Em 1991 foi sancionada a Lei que instituiu o Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (CONANDA). Então, com base nesses preceitos da descentralização político-administrativa, bem como na participação da população, a sociedade passou a dispor de instâncias responsáveis por zelar pela garantia de direitos da criança e do adolescente, com poderes para aplicar medidas de proteção destinadas a crianças e adolescentes sempre que estes direitos, reconhecidos na Lei, forem ameaçados ou violados. Importante ressaltar que a partir do ECA, coube aos municípios a coordenação local e a execução direta das políticas e programas destinados à infância e adolescência, em parceria com as entidades não-governamentais. E, para isto, estabeleceu o Conselho de Direitos1 como fórum de discussão e de formulação da política social da criança e do adolescente numa co-responsabilidade dos poderes públicos e da sociedade civil.

Quanto à política de atendimento, o ECA prevê a aplicação das denominadas medidas de proteção, que são de três tipos: (1) medidas específicas de proteção: destinadas a crianças e adolescentes em situação de risco e a crianças que cometeram algum tipo de infração; (2) medidas socioeducativas: destinadas ao adolescente ao praticar ato infracional; (3) medidas pertinentes aos pais e responsáveis: destinadas aos pais ou responsáveis que não estão cumprindo seus deveres em relação aos direitos de suas crianças e adolescentes.

A Lei determina que as medidas de proteção poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, bem como substituídas a qualquer tempo. Além disso, enfatiza que na aplicação destas, deve-se preferir aquelas que visem o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. Desta forma, considero importante destacar que a abrigagem é uma medida de proteção que só deve ser aplicada pelos Conselhos Tutelares2 e pelo Juizado da Infância e Juventude em caráter provisório e excepcional, utilizável como forma de transição para retorno à família de origem ou para colocação em família substituta, não implicando em privação de liberdade.

No entanto, na prática, a abrigagem é executada de maneira inversa (Cruz, 2006; Silva, 2004; Liberati & Cyrino 1993). Para os referidos autores, os Conselhos Tutelares têm aplicado a medida de abrigo quando não se localizam os pais, ou, quando localizados, vislumbra-se que os mesmos necessitam de tratamento especial ou, ainda, quando devam ser cumpridas determinadas diligências para reinserir as crianças e adolescentes em suas famílias. Dizendo de outra forma: abriga-se primeiro para depois buscar a reinserção na família natural ou a colocação em família substituta.


Motivos de Ingresso em Entidades de Abrigo

A negligência dos pais tem despontado como motivo de ingresso mais freqüente em entidades de abrigo. A nível nacional, o recente Levantamento Nacional dos Abrigos (Silva, 2004) aponta que, entre os principais motivos de abrigamento, está a carência de recursos materiais da família (24,1%); o abandono pelos pais ou responsáveis (18,85); a violência doméstica (11,6%); a dependência química de pais ou responsáveis (11,3%) e a vivência de rua (7%). Na leitura da autora, 52% dos ingressos estão relacionados à pobreza familiar. Segundo Rizzini e Rizzini (2004), é também a extrema pobreza que tem levado ao aumento (de 20% entre os anos de 2001-2002) de pedidos de vagas nos abrigos da cidade do Rio de Janeiro. Em Porto Alegre, uma pequena amostra da Fundação de Proteção Especial constata que 78% dos ingressos o foram pelo motivo de negligência (Santos, 2004).

Em recente pesquisa (Cruz, 2006), acessei as Guias de Encaminhamento da SOS Casas de Acolhida de Porto Alegre (entidade não-governamental que atende crianças de zero a seis anos consideradas vítimas de maus-tratos, abuso sexual e negligência grave), objetivando fazer um levantamento sobre os motivos dos ingressos. Meu primeiro contato surpreendeu-me positivamente, pois nas Guias do Conselho Tutelar constam, além dos dados de identificação da criança e do motivo do seu ingresso, três perguntas, a saber: (1) quais as medidas buscadas antes do abrigamento, que é excepcional e transitório?; (2) os pais foram cientificados da aplicação da medida?; (3) os pais foram cientificados de que a medida de abrigamento poderá ser revista judicialmente e que, caso o desejarem, deverão dirigir-se à 2ª Vara da Infância e Juventude? Podemos inferir que, mesmo que esses campos não tenham sido preenchidos em algumas Guias, parecem denotar maior compromisso e responsabilidade para aplicação da medida de proteção.

Embora a documentação de ingresso apresente lacunas quanto às medidas tomadas anteriormente à abrigagem, podemos inferir que a rede de apoio das famílias está diminuindo, pois o relato do Conselho Tutelar aponta para a ausência de familiares elegíveis para assumir a proteção das crianças em situações em que, por exemplo, os pais se encontram privados de liberdade.E se a rede de proteção familiar está tão fragilizada, podemos pensar que esse sujeito também não está conseguindo vincular-se a programas de auxílio como apoio sociofamiliar e de saúde. Cito programas de saúde uma vez que os dados mostram que o uso abusivo de drogas, mães soropositivas e sofrimento psíquico estão entre os motivos de ingresso mais freqüentes. Outra possibilidade é que, nos casos levantados, as medidas tomadas antes do abrigo não foram suficientemente aprofundadas e esgotadas. Aliás, recente estudo (Silva, 2004) aponta como um dos motivos do longo período de permanência das crianças nos abrigos a utilização indiscriminada da medida de abrigamento pelos conselhos tutelares, antes de terem sido esgotadas as demais opções viáveis para evitar a institucionalização.

Constata-se que mais da metade dos ingressos foi pelo motivo de negligência. Negligência de quem? Parece que essas crianças foram abrigadas pelo trinômio pobreza/abandono/negligência.É importante salientar que o ECA explicita que a “falta ou carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do pátrio poder” e que “não existindo outro motivo que, por si só, autorize a decretação da medida, a criança ou adolescente será mantido em sua família de origem, a qual deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio” (Brasil, 1990).

Embora a pobreza não seja motivo para abrigamento, acredito que, na luta pela sobrevivência, a extrema miséria pode ameaçar o vínculo. Por exemplo, em uma Guia de Encaminhamento proveniente do Juizado da Infância e Juventude, consta o relato de uma técnica referindo-se a uma mãe que, denotando nítido sofrimento, “entrega” seu filho recém-nascido alegando não ter condições de cuidá-lo. Ela afirma que não quer ver mais um filho em tratamento pelo uso de drogas. A criança é abrigada e, logo depois, adotada. A família adotante troca o nome que a mãe biológica dera, e nada mais consta sobre essa história. Certamente não é um fato isolado, e eu arriscaria dizer que é recorrente. Então, me pergunto: quem abandonou quem? Será que não havia alguma outra possibilidade? Será que a rede integrada de atendimento à criança foi acessada para buscar alternativas? Será que essa cidadã foi encaminhada para programas da assistência social? Pela rapidez do processo de adoção, acho que não. Talvez os recursos estejam desacreditados e/ou quem sabe a demanda seja superior frente à possibilidade de atendimento. É possível, também, que hoje esse bebê seja o filho desejado por alguém.

Nas avaliações psicossociais acerca da negligência, freqüentemente existe uma atenção maior voltada para as questões concretas da vida cotidiana, como alimentação, habitação, higiene, ou para comportamentos observados segundo idealizações do que seja “tratar bem”. De fato, é necessário que se possa dirigir a atenção para as questões subjetivas, para o discurso do sujeito e como ele está implicado, percebendo as relações que estabelece para além do que seja o esperado e poder “ler” novas configurações – que lugar “esta criança” ocupa para “este adulto” do ponto de vista da singularidade, que história de filiação está evocada aí. Um filho pode estar “entranhado” numa rede de significações diferente de outro, e, portanto, não é porque uma criança sofre maus-tratos que todos os filhos estarão na mesma situação. No entanto, não podemos esquecer que, quando uma mãe diz “este é meu demônio”, pode ter um “meu” mais marcado que o “demônio” e, dependendo da crença religiosa, pode evocar uma significação de força. Só somos sujeitos em relação à cultura – ela é o que nos diferencia.

Os técnicos têm, algumas vezes, demonstrado tanta ou mais dificuldade nesse aspecto. O profissional de medicina ou nutrição, por exemplo, que recomenda “um certo complemento alimentar para sustentação” disponível no mercado, não leva em conta a situação de sobrevivência de uma família que vive da “catação”. Não está preparado, na maioria das vezes, para orientar uma mãe com alternativas alimentares igualmente nutritivas que pode obter nas sobras da feira. Na alegação da questão de direito e qualidade, subjacente está o valor da sociedade de consumo, que atribui qualidade ao nome bem veiculado na mídia de uma multinacional da alimentação e des-reconhece o valor da natureza, que pode ser até cultivada em baldes velhos no fundo do pátio.

De fato, a interferência na vida privada de determinadas camadas sociais se dá de diversas formas. As soluções domésticas para uma depressão pós-puerperal na classe média são bem diferentes das encontradas na extrema miséria. Trabalho e realização profissional associados à terapia, com auxílio de outro adulto vinculado à criança, é uma situação bem diferente do desespero frente ao desemprego, do madrugar na fila para tirar ficha e do “ninguém pode me ajudar”. Então, a entrega no Juizado ou no Conselho Tutelar até pode ser uma forma de “salvar”, de saúde na identificação da própria dificuldade. Nas palavras de Becker (2002), muitas vezes a decisão de entregar o filho tem a intenção genuína “de protegê-lo e assegurar-lhe o afeto que não se consideram capazes de proporcionar-lhe” (p. 65). Um recente estudo de Gomes e Nascimento (2003) aponta que a desqualificação dos pais está presente nas práticas e discursos dos equipamentos sociais destinados à infância pobre, tais como juizados, centros de atendimento, escolas e abrigos e que tanto a internação quanto a atribuição da culpa à família ainda ocupam a cena das práticas de assistência. Além disso, “naturaliza-se a ‘perda’ do vínculo familiar como incapacidade das famílias de se manterem estruturadas. A pobreza também aparece como sustento dessa desestruturação familiar e conseqüente ‘perda’ do vínculo” (p. 325).


Problematizando a Negligência

A negligência tem sido configurada como uma situação de risco pessoal e social. Se recorrermos à literatura especializada, encontraremos a negligência como um tipo de violência doméstica. No conceito de Guerra (2001), a negligência representa uma omissão em termos de prover as necessidades físicas e emocionais de uma criança ou adolescente. “Ela é configurada como uma falha dos pais (ou responsáveis) em termos de alimentar, de vestir adequadamente. E quando tal falha não é o resultado das condições de vida além do seu controle” (p. 33).

Como se configura “falha das condições de vida”? E como sabermos se a falha é ou não é resultado das condições de vida além de seu controle? As condições de vida estariam relacionadas com a pobreza material? Estariam ligadas às questões de saúde? Ou, talvez, estejam relacionadas com o conceito de vulnerabilidade social. De qualquer forma, não temos indicação clara do que seriam as condições de vida além do controle da família ou responsáveis. Então cabe a pergunta: como se denomina a omissão em termos de prover as necessidades físicas e emocionais quando esta falha é em função das condições de vida? Não seria negligência? Quando uma família é considerada negligente? Abrigamentos precipitados, no sentido do desconhecimento dos fatores envolvidos na dinâmica familiar, não fomentam a perda dos vínculos familiares e comunitários? E desta forma, também não se caracterizaria como uma “situação de risco”?

Talvez uma pista esteja em Gonçalves (2003), onde encontramos que a negligência pode ser física, educacional ou emocional. A avaliação da emocional requer que se levem em consideração os valores culturais e os padrões de assistência, assim como o reconhecimento de que o fracasso em prover as necessidades pode estar relacionado à pobreza. Salienta que a negligência é a única modalidade de violência contra a criança que se define não pela ação dos pais, mas ao contrário, pela omissão.

A dificuldade em diferenciar negligência e pobreza é particularmente aguda no Brasil, uma vez que o desamparo e a privação econômica, associados ao baixo nível de informação de grande parcela da população, são características comuns num país marcado por profunda desigualdade social; são também traços usualmente relacionados ao comportamento negligente dos pais (Gonçalves, 2003, p.166).

A autora destaca, contudo, que estes dados são colhidos, em sua maioria, nos serviços públicos de saúde e de assistência social, não dispondo de informações quanto à classe social. Estudos recentes têm proposto que as famílias consideradas negligentes sejam atendidas por programas de apoio com o objetivo de inseri-las na comunidade em que residem, estabelecendo uma rede capaz de prover suporte à família com o objetivo de fortalecer os laços afetivos, pois isolamento social pode resultar em apatia, imobilismo e fracasso materno em prover as necessidades dos filhos. Ou seja, garantir/facilitar o acesso para diminuir a vulnerabilidade.

Oportuno refletirmos o que caracteriza uma situação de negligência. Podemos apontar pelo menos duas formas: a física e a emocional. A negligência física é causada com maior freqüência, por fatores econômicos, enfermidade da mãe e ignorância. Já a negligência emocional é resultante da instabilidade emocional e/ou sofrimento psíquico dos pais. Embora freqüentemente coexistam, a abordagem difere. O desemprego, junto com um sistema insuficiente de previdência social e conseqüente situação de miséria, são causadores e, muitas vezes, induzem a uma condição de tensão permanente pela sobrevivência, com frustrações constantes e sofrimento, o que vai resultando em um amortecimento da sensibilidade, até como mecanismo de defesa psíquica. Esse conjunto complexo de fatores pode, por fim, gerar uma situação de negligência, mas, cessados os fatores externos, ocorre a reversão.

Podemos ver que, mesmo que não seja de forma hegemônica, a negligência está muito associada às questões socioeconômicas. Então, questiono: será que o motivo de ingresso denominado problema socioeconômico não está sendo substituído pela denominada negligência dos pais? Nesse sentido, Fonseca e Cardarello (1999) realizaram um estudo sobre os motivos de ingresso na FEBEM (assim denominada a área de proteção na época do estudo) e constataram que 81% das crianças ingressaram por problema socioeconômico e sua decorrência, em 1985. Já em 1994, 75% dos ingressos relacionavam-se com negligência dos pais, incluindo-se nessa categoria maus-tratos, abandono, risco de vida e assistência. As autoras questionam o “aumento de pais negligentes”, aludindo a uma interpretação equivocada. Nesta, a família pobre é culpabilizada pela situação dos seus filhos; dito de outra forma: “a família que não se organiza”. Cabe, então, perguntar: o que é a desestruturação familiar, também denominada família desorganizada? Muitos autores, principalmente nas Ciências Sociais, têm feito críticas à noção de “desorganização familiar” nas classes populares, uma vez que é tomado como parâmetro o padrão dominante da família nuclear. No entanto, a concepção de família burguesa não corresponde à realidade de vida das camadas mais pobres da população, nas quais se dão outras formas de sociabilidade.

O fato da família nuclear assumir tal importância em determinadas circunstâncias históricas não significa que seja ‘natural’, muito menos ‘universal’. Pelo contrário torna-se evidente que a tão prezada noção de família nuclear é uma construção social que imaginamos como universal, justamente, porque faz sentido em nosso contexto histórico (Fonseca, 2004, p. 188).

Fonseca (1999) afirma que os modelos familiares, com que estamos acostumados a trabalhar (usualmente importados), não têm ajudado muito a entendermos a realidade em grupos populares no Brasil. Nesses grupos, por exemplo, “as redes de ajuda mútua e as lealdades duradouras se explicam através do ‘sangue’” (p. 261). A antropóloga sugere que descolonizemos o olhar para reconhecer que “numa mesma sociedade complexa, podem coexistir diversas configurações familiares – cada uma com uma lógica interna” (p. 261). Acrescenta a importância de termos presente “que o que ‘faz sentido’ num contexto não o faz, necessariamente, em outro” (p. 261).


Articulando as Políticas Públicas

Na constatação de que mais da metade dos ingressos decorre de negligência e/ou abandono, podemos pensar que não se tratam de crianças abandonadas por seus pais, mas de famílias abandonadas pelas políticas públicas e pela sociedade. E quando os critérios de ingresso não são discutidos em profundidade podem promover institucionalizações prolongadas e desnecessárias e, como conseqüência, segregação familiar e social. Será que em situações de negligência não seria mais interessante um abrigo diferenciado, onde os pais pudessem visitar seus filhos com freqüência – um espaço geográfico da própria comunidade, onde pudessem se sentir “em casa”? Parece que isso facilitaria a manutenção dos vínculos familiares. Talvez, assim, diminuísse o sentimento de incapacidade de cuidar dos filhos. Essa não seria uma maneira de potencializar os pais? Ou, quem sabe, potencializar o recurso já muito usado informalmente pelas comunidades, na circulação de crianças, constituindo programas de apoio que legitimem as famílias substitutas ou acolhedoras. Carvalho et al. (1998) apontam que os programas de guarda de crianças em famílias substitutas na própria comunidade são opções correntes em vários países. Esse tipo de guarda, mais recomendável para a criança e menos onerosa para o Estado, quase não ocorre no Brasil, seja por descrédito quanto à competência de famílias empobrecidas, seja pela resistência à oferta de subsídio financeiro destinado a essas famílias. Para as autoras, esses programas são efetivos quando sua implementação é satisfatória, quando há acompanhamento e avaliação constantes, evidentemente articulados com as demais políticas sociais públicas.

Nas avaliações de negligência, questiona-se também a efetividade das ações preventivas em saúde mental, pois, como já citado, a literatura aponta dificuldade de discernir entre situações de pobreza e sofrimento psíquico dos pais. Neste contexto, em relação à realidade das demandas encontradas nos serviço de saúde frente às situações de risco pessoal e social, perguntamo-nos como superar os modelos de assistência à saúde medicalizados e centrados nas ações bio-médicas. Diante de uma crescente e importante demanda, como reorientar ações de saúde que sejam continentes, fortalecedoras ou mesmo formadoras de vínculo, que proporcionem atenção personalizada e centrada nas singularidades de cada caso, envolvendo momentos na vida de um sujeito que se encontra vulnerável, não somente pela condição orgânica, mas por questões subjetivas, dependências e necessidade de construção de autonomia, resgatando e construindo vínculos comunitários?

Considerando os serviços da rede básica de saúde, sabe-se que as ações em capacitação/formação dos agentes comunitários priorizaram procedimentos básicos em saúde física, higiene e puericultura, bem como vigilância epidemiológica e sanitária. No cotidiano da atuação destes profissionais, as demandas relativas às situações de vulnerabilidade social freqüentemente trazem questões complexas. No que se refere ao cuidado dos filhos, como discernir entre situações de negligência emocional e os problemas relativos à pobreza? Como articular a rede de atendimento à criança e ao adolescente quando há risco de vida eminente de uma criança em situação de negligência grave?

Assim, acreditamos que é preciso fomentar ações que visem escutar as vozes das famílias e de seus filhos, pois muitas situações denominadas como “negligência dos pais” estão sendo confundidas com a precária situação socioeconômica (Cruz, 2006). Será que ainda não estamos centrando os atendimentos nas questões materiais?

Para enfrentar os problemas da infância é necessária a integralidade de olhares e escutas, pois estão em questão múltiplos fatores interrelacionados, tais como a miséria das famílias e o fracasso das políticas públicas de educação, saúde, trabalho, moradia e saneamento básico. Nesse sentido, propomos fomentar as discussões acerca das negligências: da articulação das políticas públicas, das instituições, dos operadores de direito, dos técnicos e “dos pais”. Sugere-se, também, a urgência da efetividade de políticas públicas como educação infantil, escola de turno integral e alternativas de geração de trabalho e renda, bem como ações de prevenção em saúde mental, principalmente fomentando a escuta para além das questões materiais.


Referências Bibliográficas


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1 Os Conselhos de Direitos operam em três instâncias: federal, estadual e municipal. Este órgão é o responsável pela adaptação das regras gerais previstas no Estatuto à realidade de cada município. Assim, para garantir os direitos previstos na Lei, o Conselho Municipal formula uma política de atendimento adequada ao município e fiscaliza as entidades encarregadas de executar esta política. Os Conselhos são compostos por representantes governamentais e não governamentais, de forma paritária.

2 Os Conselhos Tutelares são órgãos autônomos, de caráter não-jurisdicional, encarregados de zelar pelo respeito aos direitos da infância e encaminhar os casos de violação destes, bem como acionar o Poder Judiciário e o Ministério Público quando necessário, solicitar a prestação de serviços públicos, etc. O processo de escolha varia de acordo com o município, bem como sua inserção na máquina pública (remunerado ou não, dedicação exclusiva ou não, etc). É sugerido que os conselheiros tutelares sejam escolhidos diretamente pelas comunidades em sua área de abrangência.