Rendimento esportivo ou rendimento humano? o que busca a da Psicologia do esporte?

Katia Rubio

Universidade de São Paulo
(Brasil)

 

Resumo

A Psicologia do Esporte tem se constituído um desafio para a Psicologia mesmo antes de se tornar uma especialidade. Enquanto área de conhecimento ela se encontrou, por muito tempo, na divisa entre a Psicologia e a Educação Física, entre os limites do rendimento humano e as atividades motoras básicas e lúdicas. O esporte midiático contribuiu em muito para uma associação entre a Psicologia e o rendimento esportivo na medida que a produção do espetáculo esportivo demanda a utilização de várias especialidades na superação de adversários e recordes, finalidade do esporte competitivo e de pessoas distintamente habilidosas, o atleta de alto rendimento. Grande parte da produção da Psicologia do Esporte contemporânea tem contribuído para atendimento das necessidades do rendimento esportivo sem se preocupar no que isso implica para o rendimento humano. Este artigo busca questionar por que a Psicologia do Esporte tem caminhado nessa direção e que outro sentido é possível dar a essa produção acadêmica e prática profissional.

Palavras chave: Psicologia do Esporte; rendimento esportivo; movimento humano.

Introdução

Discutir o fenômeno esportivo na atualidade é refletir para além de marcas, recordes e rendimento. É, antes de tudo reconhecer o esporte como um conjunto complexo de elementos que envolve atleta, espectador, torcida e patrocinadores responsáveis diretos pela transformação do esporte em um dos principais negócios do planeta.

A Psicologia do Esporte, conforme tem se apresentado nas quatro últimas décadas, pode ser relacionada diretamente ao rendimento de atletas e equipes esportivas. Considerada uma especialidade da Psicologia em vários países das Américas e da Europa, ou uma sub-área das Ciências do Esporte, ela também tem sido definida como o estudo do comportamento humano no contexto do esporte ou como os fundamentos psicológicos, processos e conseqüências da regulação psicológica de atividades relacionadas com o esporte de uma ou várias pessoas atuando como sujeito da atividade.

Essas definições indicam em que direção o psicólogo do esporte pode atuar: na busca do rendimento máximo do atleta, independentemente dos meios para se chegar a esse fim, ou na busca do potencial máximo desse sujeito que além de atleta também exerce outros papéis sociais antes e depois de uma carreira esportiva profissional.

Diante da importância que o esporte vem adquirindo enquanto fenômeno social, a Psicologia do Esporte tem vivido nos últimos anos uma grande expansão como campo de intervenção e área de conhecimento, demandando esforços crescentes na formação acadêmica e na produção de conhecimento específico. O pragmatismo que caracterizou o surgimento e o desenvolvimento da Psicologia do Esporte tem influenciado ainda na atualidade a produção e intervenção em Psicologia do Esporte, com estudos e trabalhos enfocando, basicamente, a psicometria para a determinação de perfis psicológicos ou ainda tipos de intervenção cujo objetivo é maximizar e potencializar o rendimento, tendo a finalidade clara da busca da vitória. Atualmente esse quadro vem sofrendo transformações indicando a construção de uma Psicologia Social do Esporte em que rendimento esportivo e integridade de atleta não se confrontam, mas se completam.

A Psicologia do Esporte

O esporte contemporâneo é um fenômeno complexo que vem se desenvolvendo apoiado em várias áreas de conhecimento denominadas Ciências do Esporte, compostas por disciplinas como antropologia, filosofia, psicologia e sociologia do esporte, bem como a medicina, fisiologia e biomecânica do esporte, demonstrando uma tendência – e uma necessidade – à interdisciplinaridade. A Psicologia do Esporte, enquanto uma dessas sub-áreas, iniciou suas pesquisas há aproximadamente um século, estudando inicialmente aspectos próximos à fisiologia, os chamados condicionantes reflexos (Feliu, 1991). Ao longo dos anos outros temas como motivação, personalidade, agressão e violência, liderança, dinâmica de grupo, bem-estar psicológico, pensamentos e sentimentos de atletas e vários outros aspectos da prática esportiva e da atividade física foram sendo incorporados à lista de preocupações e necessidades de pesquisadores e profissionais. Na atualidade, diante do equilíbrio técnico alcançado por atletas e equipes de alto rendimento, os aspectos emocionais têm sido considerados como um importante diferencial nos momentos de grandes decisões (Buceta, 1998; González, 1997).

Caminhando par e passo com a Psicologia Geral, pode-se observar o desenvolvimento não de uma, mas de várias Psicologias do Esporte, distintas umas das outras por causa do referencial teórico que sustenta essa produção acadêmica e a diversidade do exercício dessa prática profissional (Rubio, 2001). Isso nos leva a necessidade de esclarecer que nem toda psicologia aplicada ao esporte é psicologia do esporte.

A Psicologia do Esporte tem como meio e fim o estudo e a intervenção junto ao ser humano envolvido com a prática de atividade física e esportiva competitiva e não competitiva. Esses estudos podem abarcar os processos de avaliação, as práticas de intervenção ou a análise do comportamento social que se apresenta na situação esportiva a partir da perspectiva de quem pratica ou assiste ao espetáculo (Feliu, 1997; García-Mas, 1997). A Psicologia no Esporte é a transposição da teoria e da técnica das várias especialidades e correntes da Psicologia para o contexto esportivo, seja no que se refere à aplicação de avaliações para a construção de perfis, seja no uso de técnicas de intervenção para a maximização do rendimento esportivo (Rubio, 2000; 2002).

Entre o rendimento esportivo e o rendimento humano

O esporte chamado de alto rendimento é um tipo de prática que pode se relacionar ao esporte espetáculo, protagonizado pelo atleta profissional, ou ainda, a um tipo de atividade esportiva que não é necessariamente remunerada, mas que exige do praticante dedicação e rendimento que superam uma prática de tempo livre ou amadora.

É nesse contexto que a Psicologia do Esporte tem se apresentado com maior publicidade, levando-a a ser confundida tão somente com essa perspectiva. Isso porque, em busca do rendimento máximo de um atleta individualmente ou de uma equipe esportiva são procuradas as variáveis que podem interferir em sua performance, permitindo que a vitória seja alcançada, objetivo final de toda e qualquer equipe esportiva e comissão técnica.

Na busca desse objetivo estão implicados valores próprios da sociedade atual como o trabalho alienante onde o corpo é usado e manipulado pelo próprio atleta e pela comissão técnica para alcançar o rendimento máximo, em um curto espaço de tempo, atendendo aos interesses que gravitam no entorno do espetáculo como a venda de produtos ou a imagem do patrocinador. Na concretização desse intuito está implicada a realização integral do potencial físico e emocional do protagonista do espetáculo esportivo, tendo aqui o psicólogo um papel determinante, uma vez que o rendimento máximo pode estar associado às habilidades e características inerentes do atleta, ou em outra direção na busca desse maximizador em componentes externos como o apoio social ou o uso de substâncias proibidas.

Mas o praticante da atividade esportiva pode fazer outra opção, originalmente associada ao esporte, que é a superação do próprio limite. Ao conceito que pautava essa prática era dado o nome de areté equivalente ao latino virtus que representava hombridade, valor. No sentido cavalheiresco da palavra estava expresso o conjunto de qualidades que fazem do homem um herói, e a vitória seria a confirmação desse valor. A areté seria, portanto a afirmação da condição pessoal daquele que pratica e vence um desafio, sua realização é a luta contra tudo que tente impedi-la. Essa busca não representa um individualismo egoísta que cifra ideais de amor a si mesmo, senão na busca incessante pelo absoluto da beleza e do valor. Daí a atitude de agradecimento do atleta vencedor de provas atléticas a seus oponentes. Mais do que tê-los como inimigos, o atleta que praticava a areté via no adversário o parâmetro para a realização do seu próprio limite e não alguém a ser superado, vencido e humilhado. O outro era o referencial para a superação de si mesmo.

Ainda que esses valores tenham sido a referência para a reedição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna e para a institucionalização do esporte contemporâneo, parte deles foi perdido ao longo do século XX ou substituído por apêndices incorporados às novas necessidades desse grande universo. Entretanto, a perda do referencial humano para as instituições esportivas de uma maneira geral não pode representar a tônica para a atuação do psicólogo nesse contexto.

Cagigal (1996) entendia que psicologia para o esporte significava a psicologia com todo o seu universo de estudos, experimentos e práticas, postos a serviço desse fenômeno pessoal e social que entendemos por esporte. A partir dessa perspectiva os estudos desenvolvidos buscariam enfocar o ser humano para que quando ele praticasse esporte, rendesse mais. Muitas foram as investigações produzidas nesse sentido que, aliás, andavam próximas de todos os sistemas psicológicos que tinham por objetivo melhorar rendimentos humanos. Nessa linha de raciocínio humanista Cagigal (1996) propunha a psicologia do esporte para o ser humano, cuja proposta era estudar o esporte como feito humano. Ou seja, mais do que se preocupar com rendimento esportivo atendia a uma melhora do ser humano por meio do esporte. E aqui o esporte seria um instrumento, um meio para o ser humano descobrir e desenvolver suas potencialidades e habilidades. Na primeira concepção, onde o esporte aparece como um fim imediato, a responsabilidade do técnico e outros profissionais seria buscar e obter o maior rendimento.

Que finalidade teria então a preparação e o treinamento psicológicos?

Quando o lema é rendimento (tendo no esporte atual como sinônimo a vitória) os esforços são direcionados para a exploração máxima das capacidades individuais e coletivas, para a supressão dos pontos frágeis ou negativos e maximização daqueles considerados positivos e desejáveis.

Para tanto são estudadas condutas dos praticantes em suas modalidades específicas, buscando-se investigar as relações entre as situações antecedentes e a conduta resultante no âmbito dessa atividade (Balanguer, 1994; Llave, Pérez-Llantada, Buceta, 1999). E para conseguir essa finalidade a psicologia busca investigar, com a ajuda de procedimentos objetivos, o funcionamento do comportamento individual e social, a fim de superar o pensamento irracional, substituindo-o pela observação e a experimentação (González, Rodríguez, García, 2001).

Por outro lado, no entender de Feijó (1992) a preparação psicológica pode ir em uma outra direção. Afirma o autor que os objetivos do preparo psicológico devem coincidir com os objetivos pessoais do atleta. Isso porque existem os objetivos políticos e financeiros do clube que está investindo no atleta, os objetivos competitivos de garantir vitórias, do treinador e outras tantas preocupações dos vários profissionais que compõem a comissão técnica. Sugere o autor que o preparo psicológico do atleta que vive a situação esportiva competitiva deve estar voltado para o equacionamento entre os seus próprios interesses e os interesses do complexo esportivo com o qual ele precisa lidar. Muitas vezes esses interesses convergem para pontos em comum como o desejo de vitória e de aperfeiçoamento. Entretanto, certas metas são discordantes como o limite do desgaste do atleta, prêmios ou a relação treinamento/lazer. E nesse universo tão repleto de intenções o psicólogo acaba por desempenhar o papel de mediador da comunicação dos distintos desejos.

Considerações finais

Diante do que foi exposto seria possível afirmar que a Psicologia do Esporte segue hoje, muito proximamente, os passos, avanços e recuos tanto da Psicologia como do Esporte. Isso representa por um lado o compromisso com a construção rigorosa da teoria que fundamenta uma prática em desenvolvimento e por outro a instabilidade das instituições esportivas que dizem desejar o rigor da profissionalização, mas que ainda convivem com o amadorismo no gerenciamento dos clubes e grande parte das Federações e Confederações esportivas.

Isso tem dificultado o planejamento de atuação do psicólogo junto a atletas e equipes esportivas uma vez que o trabalho psicológico específico requer tempo e disponibilidade para sua realização, posto que toda intervenção em psicologia, em qualquer área de aplicação, é realizado a médio e longo prazos.

Outro grande ganho para a área tem sido o fortalecimento da Psicologia Social do Esporte em que os limites do diagnóstico e intervenção junto a atletas e equipes esportivas foram extrapolados para agregar a esse universo os estudos sobre a influência dos pais na prática e desempenho dos filhos atletas, do comportamento das torcidas e do público diante do espetáculo esportivo, da violência relacionada com o esporte, o efeito da ação da mídia na produção do fenômeno esportivo contemporâneo, entre outros temas. É esse novo referencial que irá nos permitir olhar e avaliar o fenômeno esportivo, bem como seu protagonista, para além de um modelo norteado pelo rendimento e pela busca desmesurada da vitória.

Nessa perspectiva o rendimento esportivo passa pelo rendimento humano, pelo desenvolvimento das potencialidades individuais e coletivas daqueles que praticam o esporte como profissão e como atividade de tempo livre, não se restringindo a um lapso temporal dentro da vida do sujeito, que o leva a viver o final da carreira como uma morte.

Ou seja, para a Psicologia Social do Esporte o rendimento, o bom desempenho e a postura vitoriosa são valorizadas e buscadas não como valores destacados na vida do atleta, mas como elementos de um contexto maior que oferece o suporte necessário para que o papel social de atleta seja desempenhado em sua plenitude. Nessa perspectiva o atleta não é apenas mais uma peça de uma grande engrenagem chamada esporte, mas é o razão da existência desse fenômeno, e como tal merece o respeito e a consideração de gerenciadores e público. E assim, essa figura de projeção, alvo de identificação de um grande número de crianças e jovens passa a exercer plenamente sua condição de cidadão e a oferecer uma nova referência de identidade, não mais o ídolo passivo mas o herói atuante.

Bibliografia:

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