Regresar al �ndice del N�mero 6



Assist�ncia e Ensino na Institui��o Psiqui�trica: Interfaces de uma Experi�ncia Plural

Ademir Pacelli Ferreira

Ana Maya Szuchmacher

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil)


Resumo

Prop�e-se com este estudo analisar elementos da experi�ncia docente assistencial em institui��o psiqui�trica. Parte-se do caso cl�nico como constru��o plural, interdisciplinar. A terap�utica caracteriza-se como projeto conjunto da equipe que convoca o sujeito a participar e a comprometer-se com as possibilidades de novos desdobramentos para o seu destino. Entende-se a elabora��o do projeto terap�utico como elo unificador das diversas a��es e dos diferentes saberes cl�nicos. Atrav�s da an�lise da singularidade do que surge como produ��o do sujeito; dizeres, a��es, atitudes e demandas, visa-se refletir sobre as fun��es da interna��o, da continuidade da assist�ncia psiqui�trica externa e do ensino da cl�nica, confrontando a �tica do isolamento com a perspectiva da reforma psiqui�trica. Demonstra-se, finalmente, que a constru��o do caso cl�nico enriquece a pr�xis em sa�de mental ao contribuir com a reflex�o te�rica e com a constru��o de dispositivos assistenciais da reforma, beneficiando ainda o ensino e a forma��o profissional.

Palavras chave: Interna��o, acolhimento, caso clinico, reforma psiqui�trica

Abstract

The docent-assistential experience is approached here in its practical plurality in the psychiatric institution. At first, a synthetical review of clinical case methodology and concepts are presented, following the case construction and analysis to support its importance to the therapeutic plans direction. Finally, attention is called to the relevance of the elaboration of the case and the internation exit moment for the sucess of external treatment continuity, also its contribution for reforms project and the professional preparation.

Key words: clinical case, plurallity, construction, internation, psychiatryc reform

Resumen

La experiencia docente assistencial es abordado en suya pluralidad pr�ctica en la instituci�n psiquiatrica. De inicio se presenta una revisi�n sucinta de la concepci�n y de la metologia del caso clinico. En seguida pasa-se a la construcci�n y an�lisis del caso, donde se afirma suya importancia en la direcci�n del plan terapeutico. Finalmente, llama-se la atenci�n para la relevancia de la elaboraci�n del momento de la salida de la internaci�n para el suceso de la continuidad del tratamiento externo, acrescentando su importancia en la formaci�n professional y en el ensino.

Palabras claves: caso clinico, pluralidad, construcci�n, internaci�n, reforma psiquiatrica


Introdu��o

Visamos demonstrar aqui a constru��o do caso e do plano terap�utico na interna��o e na continuidade do atendimento ao paciente psic�tico como modalidade de ensino e pesquisa, numa perspectiva que entendemos como sendo de uma cl�nica plural. Nesta perspectiva, apresentaremos um caso cuja constru��o ser� abordada em sua pluralidade pr�tica a partir da interna��o, vincula��o inicial e cria��o de condi��es de sua continuidade terap�utica no HD, onde ressaltamos a import�ncia da delimita��o da dire��o do plano terap�utico.

O primeiro esbo�o de um programa terap�utico deve ser previsto no pr�prio momento da interna��o, onde a soberania da cl�nica deve ser obedecida para evitar os diagn�sticos apressados e as interven��es inadequadas. Outro aspecto que entendemos como de grande import�ncia para o projeto terap�utico da cl�nica institucional � a elabora��o do momento da sa�da da interna��o, sem a qual, o sucesso da continuidade do tratamento externo tem poucas chances.

Partimos da �nfase na pr�tica interdisciplinar, j� que a interna��o � uma modalidade assistencial cuja fun��o pode ser dividida em social e terap�utica (ZENONI, 2000). Ao envolver v�rios profissionais com diferentes fun��es, al�m de outros internos, cria-se um inv�lucro coletivo, onde as condi��es de interlocu��o devem ser mantidas como um princ�pio �tico, para favorecer a supera��o das controv�rsias e disputas interprofissionais. Neste campo de experi�ncias extremas ningu�m possui a resposta, at� porque esta s� pode ser constru�da na experi�ncia terap�utica plural. Deve-se privilegiar as contribui��es da coletividade em circula��o para que se mantenha a interlocu��o.

A quest�o do ensino ou da transmiss�o envolve a pr�pria id�ia da constru��o do caso cl�nico, onde al�m de elementos do quadro psicopatol�gico e da organiza��o da hist�ria cl�nica, constitui-se um esfor�o de transformar em saber uma experi�ncia cujo fim � o outro, o destinat�rio, que poder� ou n�o acolh�-lo e tornar-se testemunha desta aventura. Nesta experi�ncia, o drama do paciente poder� desdobrar-se em novos sentidos, revelando ainda elementos contra-transferenciais que poder�o ganhar visibilidade no circuito da comunica��o-narrativa (cf. Hoppe, 2000). Trata-se, portanto, de uma via metodol�gica fundamental na elabora��o da teoria em cl�nica.

A casu�stica m�dica confunde-se com o pr�prio nascimento da cl�nica m�dica (Ferreira, 2002b), que gerou o conhecimento da semiologia, das s�ndromes, do diagn�stico diferencial, da evolu��o e do tratamento das doen�as. Os casos demonstram como o organismo porta, desenvolve e manifesta a doen�a, al�m das formas e recursos que o m�dico disp�e para intervir neste organismo ao visar o combate da doen�a.

Para Freud, o caso cl�nico ganhou import�ncia fundamental para a elabora��o de seu m�todo terap�utico e de sua teoria ou metapsicologia, ultrapassando, assim, o m�todo tradicional da medicina. A constru��o da psican�lise se funda na articula��o estreita entre experi�ncia e saber, entre cl�nica e teoria. Como afirma Fedida, citado por D�Agord (2000:12), (...) na psican�lise, o caso � uma teoria em g�rmen, uma capacidade de transforma��o metapsicol�gica. Portanto, ele � inerente a uma atividade de constru��o.

A Interna��o: recolhimento e acolhimento versus reclus�o e segrega��o

Na interna��o de um paciente, no seu prontu�rio, logo ap�s os dados de identifica��o, o t�pico que se segue � o motivo de sua interna��o. S�o v�rias as raz�es que podem justificar uma interna��o, tanto subjetivas quanto objetivas. Na perspectiva da segrega��o do doente mental, dispensa-se maiores justificativas para a sua reclus�o, j� que bastava a constata��o da desraz�o do louco (del�rios, alucina��es, comportamentos bizarros, desvarios), para lev�-lo ao hosp�cio. Para se contrapor ao modelo da interna��o autom�tica, a perspectiva da Reforma deve estabelecer crit�rios para que algu�m seja internado e contrapor a m�xima - lugar de louco � no hosp�cio - marcada profundamente no imagin�rio social.

Desde o primeiro contato com o paciente, e o estudo de caso surge como possibilidade de indicar a dire��o do tratamento, onde os elementos cl�nicos que justificaram a interna��o possam ser traduzidos e transformados com a assump��o da hist�ria do sujeito e que se possa criar um espa�o de acolhida, de fala e de a��o que favore�am a produ��o de sentidos e de singularidades. O plano terap�utico envolve tamb�m a discuss�o das condi��es de sa�da e de manuten��o do tratamento externo. O que demanda um trabalho de equipe, onde o arranjo dos elementos que permitir�o a sua interpreta��o e constru��o2 surge das m�ltiplas implica��es e de efeitos transferenciais elaborados em trocas e supervis�es. Nesta cl�nica privilegiamos o acompanhamento do sujeito psic�tico em suas possibilidades de arranjo, como aponta Zenoni (2000) sobre a segunda cl�nica de Lacan, ao inv�s de basear-se na falta, na negatividade, acompanham-se as solu��es positivas e inven��es do sujeito.

Se a constru��o do psicanalista � feita atrav�s da experi�ncia anal�tica, da qual � testemunho individual, na interna��o, v�rios agentes participam desta experi�ncia, inclusive v�rias categorias, cada uma com seus referenciais �ticos, t�cnicos e te�ricos. Trata-se de uma transfer�ncia de trabalho (Lacan, Apud Figueiredo, 2004), o que, segundo esta autora, op�e-se aos efeitos narc�sicos imagin�rios, seja em rela��o � confus�o de pap�is (modelo igualit�rio), seja na fixa��o de pap�is (modelo hier�rquico).

Diferentemente do ensino cl�ssico, a descri��o, a nomea��o e a diferencia��o dos sintomas, n�o devem ser reduzidos ao mero exerc�cio acad�mico com fins de demonstra��o no ensino, como em uma cl�nica das esp�cies (cf. Figueiredo, 1999). N�o se trata, portanto, como afirma Stevens (1996:24), de uma falta de ser, mas de uma forma de ser. O diagn�stico � visado, nesta perspectiva, como esfor�o de localizar o pathos no sujeito (cf.Figueiredo, 2004).

A cl�nica m�dica inclinou-se sobre o doente ao p� do leito. Esta posi��o ou inclina��o - o doente estendido no leito e o m�dico que se aproxima para colher e identificar a enfermidade que o acometeu e oferecer o al�vio para o seu sofrimento � ao seguir um m�todo minucioso e sistem�tico de descri��o e organiza��o das observa��es, produziu um importante saber sobre as doen�as (Foucault, 1977).

O prop�sito de nosso caso � abordar uma experi�ncia que ilustra o cotidiano do esfor�o de uma pr�tica interprofissional, onde h� que se superar os embates, disputas e impasses para que seja poss�vel sustentar a discuss�o e afirmar o programa terap�utico. A manuten��o da discuss�o de equipe s� � poss�vel se os lugares, as fun��es, os atos e as propostas de interven��o puderem ser avaliados, questionados e discutidos.

A Outra Face da Vila: O Hospital-Dia como espa�o de reconstru��es singulares 3

A institui��o onde atuamos funciona em uma vila. Quando o Hospital-Dia (HD) foi criado, apesar de ser utilizado uma casa da vila, a sua porta de acesso foi aberta para fora. Numa oficina onde cada um foi convidado a escrever e falar sobre a fun��o deste e sobre as suas experi�ncias no HD, um freq�entador o caracterizou como a varanda da casa. Ele vinha do nordeste onde tinha sido criado numa casa com varanda e redes. Lugar intermedi�rio, entre o interno e o externo, a varanda oferece a alma o descanso e a prepara��o para a circula��o. Neste sentido, acreditamos que sua defini��o ou apreens�o deste espa�o vivido foi muito adequada.

O HD pode remontar � experi�ncia de George Bell na Esc�cia em 1949, com seu servi�o Open Door. A reforma da psiquiatria americana da d�cada de Sessenta ampliou bastante o seu uso. Trata-se de um dispositivo de cuidado externo e ao mesmo tempo ligado ao hospital psiqui�trico. Caracteriza-se como um espa�o intermedi�rio entre a interna��o e a vida externa, que busca promover a reinser��o s�cio-afetiva, a cria��o de la�os sociais, a autonomia e a conquista da cidadania dos sujeitos que sofrem de psicose (Ferreira, 2002a). No caso da institui��o em causa, o principal objetivo de sua cria��o surgiu com a demanda de atendimento da pr�pria clientela da Unidade Assistencial, que ao sair da interna��o necessitava de maiores suportes atrav�s de uma modalidade de cuidado externo e intensivo.

Os recursos terap�uticos e o dispositivo do HD s�o articulados com o sistema assistencial mais amplo, que se comp�e de um conjunto de atividades fixas e da criatividade para inventar outras, tanto no espa�o interno quanto externo, ou seja, no campo urbano circundante. O trabalho � realizado por uma equipe interdisciplinar que al�m de interven��es mais t�cnicas, participam ativamente do dia a dia da experi�ncia. Neste sentido, cria-se um ambiente de conviv�ncia que ultrapassa os lugares t�cnicos e funcionais.

Propomos seguir alguns passos da constru��o muito singular de uma pessoa que encontrou neste dispositivo a sustenta��o de suas possibilidades de manter la�os e um circuito de deslocamento, isto �, de ir e vir diariamente. Neste sentido, suas atividades delirantes e alucinat�rias n�o a impedem de se manter em atividade, seja as do lar e ou as oferecidas pelo HD. Este n�cleo � freq�entado por uma m�dia de trinta e cinco pessoas adultas, homens e mulheres, com faixa et�ria variada e em sua maioria com o diagn�stico de esquizofrenia. O acesso se d� atrav�s de uma entrevista de triagem onde � avaliada a import�ncia deste dispositivo para o paciente e a partir da� o seu projeto terap�utico � elaborado.

Retomando os objetivos iniciais, de ter o caso cl�nico como unidade de an�lise, vamos abordar o acompanhamento de uma pessoa que a partir de uma interna��o e da media��o de sua sa�da, encontrou na oferta do HD uma possibilidade de estabelecer elos de liga��o para a sua exc�ntrica exist�ncia.

Um Percurso Singular: os poderes da luz interior

Entendemos a escolha desta hist�ria que tentaremos reconstruir de forma muito incompleta neste momento, como paradigm�tica para refletir sobre as formas de sustentar a singularidade de uma exist�ncia psic�tica. Al�m disso, sabemos que buscamos sempre saber o que poderemos derivar da� para pensar o que sustenta a pr�pria subjetividade humana. Neste sentido, podemos ver nos esfor�os originais da psiquiatria � medicina da almauma resposta consoante com o esp�rito da modernidade, ou seja, a partir do estudo das doen�as mentais poder ilustrar nossa mente e o meio circundante.

Dani, como nomearemos esta freq�entadora4 relativamente recente da psiquiatria, apesar de hist�ria longa de altera��o psic�tica de sua vida, tem atualmente 44 anos, � brasileira, negra, casada e m�e de dois filhos. Seu pai, 78 anos, � aposentado por invalidez pela psiquiatria, com hist�ria de tratamento irregular. E sua m�e, 72 anos, � do lar e, segundo o marido de Dani, tem problemas de sa�de dos nervos e n�o faz tratamento.

Dani nos surpreende muito com sua excentricidade; sua forma de se vestir, seus jeitos e trejeitos, seus gestos finos, sua voz quase sussurrada e sua forma cuidadosa de se relacionar com os outros. Pode demonstrar momentos de irritabilidade, mas o tempo todo procura ser gentil e oferecer a sua gentileza aos outros. Ela tem poderes especiais por ter Nossa Senhora dentro dela, o que a faculta falar l�nguas e curar os outros. Suas m�os possuem poderes de cura, e ela gosta de nos tocar com seus dedos t�o finos.

A maneira como chegou � institui��o foi tamb�m bastante especial. H� dois anos ela compareceu ao ambulat�rio do Hospital Geral com a solicita��o de que fosse feito um exame de DNA. Argumentava que era para provar para o seu marido quem ela era. Afirmava que seus filhos tamb�m teriam que realizar o mesmo exame. � como se ela pedisse a gen�tica que vinculasse a sua fam�lia, desagregada em suas representa��es e na vida real. Dizia ela, eu n�o sei se bicho pode ter filhos, eu sei que a Gio (filha) nasceu de mim, fiz preventivo, mas n�o tenho certeza. Apesar de ter ido sozinha ao hospital, dizia n�o saber voltar para casa, neste sentido foi encaminhada para a unidade de psiquiatria como caso social.

A justificativa social para o seu encaminhamento para a unidade de psiquiatria foi acrescida da informa��o de que n�o havia nenhum familiar presente, seus familiares n�o poderiam busc�-la e leva-la para casa e dizia que n�o sabia voltar para casa. N�o era dif�cil entender que o seu pedido era delirante, mas ela n�o parecia em crise, como neste hospital h� uma certa no��o da possibilidade de atendimento externo, mesmo com a presen�a do del�rio, a justificativa para o encaminhamento foi estabelecida como da ordem do social e n�o devido ao quadro delirante, o que seria mais comumente utilizado anteriormente.

Portanto, ela foi internada por falta da presen�a de familiares e seu marido s� compareceu no dia seguinte. O plantonista que a atendeu avaliou que, mesmo sem motivos emergenciais, a paciente se beneficiaria da interna��o, na medida que a equipe poderia observar melhor o caso e viabilizar o retorno ao tratamento anterior, que havia sido abandonado. Isto �, foi visto que ela j� teria vindo ao ambulat�rio desta institui��o e n�o tinha mantido o tratamento. Nesta avalia��o inicial ela dizia que havia pessoas que a vigiavam por c�maras na luz. Eles querem me deixar nervosa, agressiva. Eu n�o sou.Tornava-se emotiva e chorava ao dizer isso. Ainda foi observado neste contato que ela apresentava pensamentos de conte�do persecut�rio e atitude de escuta alucinat�ria.

A partir de seu prontu�rio anterior foi constatado que o seu primeiro contato com esta institui��o ocorreu em 1995, por indica��o de um amigo da fam�lia, onde permaneceu internada durante dois meses. Ap�s a interna��o foi proposto o acompanhamento ambulatorial, mas este foi abandonado. Se durante a interna��o n�o foi poss�vel o estabelecimento do dispositivo de intermedia��o, essa continuidade n�o se sustenta. Al�m disso, o atendimento ambulatorial tem pouco sucesso nestes pacientes mais isolados.

Dani informou que estudou at� a quarta s�rie prim�ria e que tinha uma vida normal. Teria trabalhado como auxiliar de servi�os gerais por mais de quatro anos, mas com algumas interrup��es.

Possui documenta��o completa e guarda estes documentos com cuidado, relatando que seu marido, que � biscateiro, seria dono de uma empresa e quer pegar seus documentos para fraud�-los, no intuito de �sujar� o seu nome (Sic).

Segundo o casal, eles se uniram consensualmente em 1980 e ap�s dez anos residindo juntos decidiram se casar.

A hist�ria patol�gica de Dani teria come�ado em 1994, quando apresentou altera��es de comportamento, isolamento, clinofilia e perda do apetite. Segundo informa��es anteriores, apresentava semblante triste, id�ias de suic�dio e comunica��o limitada por gestos, o que dificultava o entendimento com a fam�lia.

Retornando � interna��o de dois anos atr�s, ela permaneceu durante uma semana e depois obteve licen�a m�dica de fim de semana, mas n�o retornou no dia previsto, recebendo alta por abandono. Tr�s dias depois, Dani reaparece no servi�o e � internada. Agora seus del�rios se apresentavam de forma mais franca, dizia ter um dem�nio dentro dela. Tamb�m se referia a uma vis�o de luz ou de Nossa Senhora. Apresentava alentecimento do pensamento, psicomotricidade inibida, atitude desconfiada e discurso de car�ter persecut�rio.

Ap�s esta r�pida reinterna��o foi lhe oferecido um acompanhamento ambulatorial, que � feito com sess�es semanais ou quinzenais, por�m, ela n�o respondeu a esta modalidade de oferta, diante disto, foi encaminhada ao HD. Respondeu muito bem a esta modalidade di�ria de cuidados. Durante a sua interna��o desenvolveu um amor especial por um professor de enfermagem. Amor sublime e idealizado, compondo um casal imagin�rio. Acredita que este tamb�m a ama. �s vezes ela comprava presentes curiosos para ele, por exemplo, uma chave de fenda, que seria para ela ajuda-lo a consertar o carro.

Seu programa terap�utico inclui a indica��o do neurol�ptico regular, mas n�o mant�m esta regularidade, apesar de n�o se opor a aceita-los quando � lembrada. Alguns freq�entadores tomam a medica��o no HD por falta de acompanhamento e autonomia em casa. Apesar das agress�es f�sicas n�o aparecerem com freq��ncia, ela teve um atrito com o marido, onde quebrou o seu celular e este o joga em sua cabe�a. Depois deste golpe afirma ter visto uma luz e que algo entrou em seu corpo.

Outro del�rio persistente � o de que ela � feita de metal. Mostra a ma�aneta para comparar com o seu corpo. Do metal ela afirma ser uma m�quina, uma m�quina extraplanet�ria. Apesar de vir regularmente, sua participa��o nas oficinas n�o envolve um engajamento real. Participa, de forma um pouco dispersa, de v�rias oficinas: conviv�ncia, caf� dan�ante, express�o simb�lica, culin�ria e itinerante (atividades externas, centros culturais e outros). Al�m das oficinas, disp�e de atendimento individual semanalmente. � interessante observar que, apesar de se apresentar com um corpo com maneirismo e inibi��o psicomotora, ela dan�a muito bem e com �timo ritmo. Quando tem festa, lanche coletivo, ela colabora com a elabora��o dos pratos e mostra-se atenciosa com as pessoas, procurando servir a todos que chegam.

Depois de algum tempo deste acompanhamento, ela conseguiu organizar melhor a sua conduta e o seu funcionamento mental. Continua apresentando a glossolalia (mistura de neologismos, sons imitativos, que diz ser uma l�ngua) e del�rios como o de influ�ncia de Nossa Senhora dentro dela. � esta influ�ncia que lhe d� poderes de falar l�nguas e suas m�os podem curar doen�as. � tamb�m muito prestativa.

Como j� dissemos, sua freq��ncia ao HD � ass�dua e ela chega cedo na institui��o. Gosta de entrar antes na enfermaria para conversar com as pessoas conhecidas (porteiro, t�cnicos e outros pacientes). Apesar de morar afastada do local, em uma comunidade pobre, afirmou que vinha caminhando de sua casa at� ao HD, talvez por falta de dinheiro. Disse que levantava as cinco horas e antes de sair preparava o caf� da manh� para os filhos, um rapaz, do qual se orgulha, pois tem trabalho fixo numa empresa conhecida, e uma filha adolescente, com a qual se preocupa bastante. Apesar de idealizar seu relacionamento com esta e demonstrar que cuida dela, sua filha usa drogas e tem relacionamentos com pessoas que ela n�o aprova. Isto �, demonstra preocupa��es normais de uma m�e de filha adolescente, mais suscet�vel de se envolver com o tr�fico e com maus elementos. Em entrevista familiar foi observado que a filha n�o demonstra respeito e toler�ncia para com ela, a considera louca.

Segundo os familiares, ela consegue manter algumas atividades dom�sticas. Sua rela��o com o marido � amb�gua, sua fantasia amorosa pelo professor � mantida platonicamente como sendo o amor verdadeiro. Neste sentido, seu casamento com o marido � colocado em outro plano, como se n�o tivesse mais validade. Mas sua ambig�idade surge quando fala de poss�veis amantes do marido e estas aparecem como rivais, e o seu ci�me acaba se expressando.

Como minha rela��o com o setor � no lugar de professor, como supervisor das estagi�rias de psicologia, com quem ela sempre estabelece bom contato, ela me trata com rever�ncia e uma certa cerim�nia. Talvez pelo meu nome, geralmente as pessoas n�o observam meu tra�o ind�gena, mas ela n�o deixou passar, ao ser convidada por uma estagi�ria para ir at� ao campus da universidade me visitar, ela comentou: vamos ver o �ndio? Para a surpresa da equipe, ela detectou um tra�o do long�nquo antepassado que os outros n�o enxergaram. Geralmente dirige solicita��es institucionais a mim; conseguir passe livre para o transporte � que demorou muito � computador para o HD e ultimamente quer que eu a ajude a criar um servi�o de manicure, para que ela possa atender as pessoas da institui��o. A partir de v�rias de suas falas, podemos entender que ela gostaria muito de ter uma fun��o no hospital. J� justificou este desejo no sentido de estar pr�ximo de seu amado. O fato de n�o ter dinheiro tamb�m a preocupa, pois s�o pobres e ela gostaria de ter melhores condi��es materiais.

Mais recentemente ela vem me solicitando que a ajude em sua tarefa de salvar o mundo, ela recebeu de Jesus a tarefa de salvar o mundo, mas � uma solicita��o muito grande para ela, por isso quer que a ajude, pois � demais para ela sozinha, digo que realmente n�o pode dar conta de tanta coisa sozinha, por isso ela pode contar com este lugar onde pode dividir responsabilidades. Suponho que ela relaciona esta fun��o de salva��o atribu�da pelo Cristo com a ajuda aos outros, a doa��o e o amor aos outros. Ao perguntar como est� se cuidando, ela diz que est� muito magrinha, tem uma for�a (curativa) dentro dela, mas seu corpo � fr�gil. O acesso desse outro que a visita parece ser feito atrav�s da experi�ncia fant�stica ou da vis�o. Indago se isso ocorre com ela dormindo ou acordada. Ela diz que n�o dorme, nunca dorme, apenas relaxa. Portanto, parece que s�o experi�ncias que ocorrem neste estado que ela chama de relaxar. Vis�es, mensagens, sensa��es corporais, viv�ncias fant�sticas que s�o inseridas no registro da cren�a.

Apesar de ser a entidade carro chefe da psiquiatria, o conceito de esquizofrenia ultrapassa a id�ia de uma doen�a. Dani � diagnosticada como esquizofr�nica catat�nica. Na tradi��o estrutural, a pessoa n�o tem esquizofrenia, ela � esquizofr�nica (Ey, 1982). N�o se trata, portanto de uma condi��o de crise, mas de uma forma de exist�ncia. Uma condi��o que Ey (idem) entende como resultante de um processo negativo, de dissocia��o, e de uma reconstru��o do mundo numa perspectiva de um eu que perde a reg�ncia da realidade compartilhada, e o reconstr�i subjetivamente.

Para Freud [1924] a diferencia��o principal das condi��es psic�ticas em rela��o �s neuroses, � essa maneira de reconstruir a realidade que foi refutada a partir do desejo. A derrocada do eu � compensada por Dani atrav�s da pot�ncia a mais de que � dotada por Cristo e Nossa Senhora para curar os sofrimentos dos humanos e salvar o mundo. Isto, atrav�s de atos de doa��o. Suportada nesta perspectiva, ela � movida diariamente para sair de sua pobre situa��o material e afetiva que circundam a sua vida comum, e encontrar o espa�o do HD, onde encontra possibilidades de fala e de exerc�cio de suas ilus�es delirantes, mas que s�o tamb�m incumb�ncias do grande outro. Isto �, neste campo de circula��o, de a��o, de linguagem e sentidos, ela compartilha e mant�m suas exig�ncias, campo este que � comum a todos n�s e nos sustenta enquanto humanos.

Ao entender o percurso de Dani como singular n�o estou dizendo que haja a� uma grande criatividade, no dia a dia, suas demandas e produ��es podem parecer bem padronizadas, as estereotipias revelam certo empobrecimento, mas isto n�o impede que ela possa dar respostas criativas e solu��es que permitem a sua sobreviv�ncia no seu espa�o de circula��o muito pr�prio.

Portanto, � singular a maneira como ela consegue cerzir seus retalhos de eu e manter sua circula��o no espa�o urbano, onde ela pode imprimir seus tra�os pr�prios. Ao procurar o hospital geral para certificar para o marido que ela � ela, buscava tamb�m prote��o para as suas experi�ncias recha�adas pelos familiares como coisa de maluquice.

Ao ser encaminhada para a psiquiatria, n�o criou nenhuma oposi��o. J� havia dito que n�o saberia voltar para a sua casa sozinha, ou seja, procurava abrigo, uma demanda que n�o � simples, ela buscava junto a medicina um acolhimento para seu ser amea�ado pela n�o exist�ncia, j� que nem os la�os geracionais estavam garantidos. Esta demanda foi cunhada de social, termo comum para a situa��o de indig�ncia. � social, na medida em que ela se via pressionada e exclu�da do conv�vio social, pois suas produ��es n�o cabiam neste social, quanto mais tentava responder a este n�o cabimento, mais era exclu�da como maluca. Ao enfatizar o significante sa�de mental a reforma psiqui�trica brasileira procurou contrapor-se ao estigma da negatividade do asilo. Trata-se de arranjo de for�as, de uma tentativa de positivar um campo antes negativizado pela cultura manicomial e excludente (RINALDI, 2002).

Considera��es Finais

Quando se compartilha a cl�nica intensiva, ela se torna bem mais leve para todos (Ferreira, 2005). Sobre o m�dico, muitas vezes recai a grande carga, seja da fam�lia, querendo resultados e explica��es diagn�sticas e terap�uticas, seja devido ao lugar que este ocupa no discurso do mestre - um lugar de saber e dom�nio sobre o outro.

O trabalho de elabora��o desta passagem da interna��o para o tratamento e para a vida externa �, ao nosso ver, fundamental na continuidade do mesmo. Se n�o houver uma posi��o firme e de confian�a dos terapeutas, a reinterna��o surge como resposta � demanda n�o transformada em comprometimento subjetivo. Para que o paciente possa se comprometer com seu tratamento, � necess�rio que encontre no outro receptividade e suporte. A sa�da da interna��o � um momento sens�vel e exige aten��o do projeto da reforma psiqui�trica, pois dele depende boa parte de seu sucesso.

O v�nculo criado na interna��o permitiu que esta paciente viesse ao HD. Havia ainda um certo efeito de tra��o que a fazia mover-se e produzir alguma mudan�a em sua vida, ela criou um amor especial por um membro da equipe, estar na institui��o representava estar pr�ximo de seu amor. Foi poss�vel o surgimento do trabalho de Eros, ocorrendo a� um la�o que vem permitindo a continuidade de seu atendimento externo. Se a sua erotomania � frustrante, nela este amor ideal tem mantido seu lugar de ideal e favorecido a cria��o de seus arranjos para o cotidiano. H� algum tempo ela vem reivindicando novas possibilidades de trabalho real, ainda ligados � institui��o. Idealiza aquilo que est� pr�ximo ao hospital - o bairro, as escolas - neste sentido conseguiu vaga para a sua filha numa escola ao lado deste.

Este trabalho vem refletir um pouco de minha perspectiva nestas mais de duas d�cadas de institui��o psiqui�trica, onde tenho tentado sustentar a articula��o assist�ncia, ensino e pesquisa, al�m do esfor�o de manter a interlocu��o interdisciplinar e de intervir sempre contra o corporativismo. A cria��o do outro (os enfermeiros, os psic�logos os m�dicos, etc) � investido do narcisismo das pequenas diferen�as, que ao radicalizar-se, destr�i as condi��es �ticas e transforma a conviv�ncia em algo insuport�vel. Neste sentido, a pr�xis da cl�nica suportada na pluralidade (Ciaccia, 2005) investe de grande import�ncia para ajudar a superar as t�o freq�entes desaven�as interprofissionais.

Refer�ncias Bibliogr�ficas

Notas

1. Uma vers�o abreviada foi apresentada no ULAPSI � SP/Abr/2005 Regresar al texto

2. Figueiredo define estes dois termos como se segue: �A constru��o � um arranjo dos elementos do discurso visando uma conduta; a interpreta��o � pontual visando um sentido.(...) A finalidade da constru��o deve ser justamente a de partilhar determinados elementos de cada caso em um trabalho conjunto, o que seria imposs�vel na via da interpreta��o (FIGUEIREDO, 2004:78). Regresar al texto

3. Uma primeira descri��o deste caso foi Mostra de Extens�o e na Semic/UERJ (2004) pelas bolsistas de extens�o Eveline Emile Ribeiro e de pesquisa, Ana Maya Szuchmacher, ligadas aos projetos por mim coordenados. Regresar al texto

4. Ao termo Usu�ria, utilizado pelo discurso da Reforma, preferimos este termo. Regresar al texto





Por favor firme nuestro libro de visitas.