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Violência urbana: avaliação de vítimas e pessoas que tiveram acesso à informação

 

Oliveira, Daniela Moraes de

Rosa, Edinete Maria

Souza, Lídio de

Universidade Federal do Espírito Santo - Vitória, ES - Brasil

 

 

Resumo

A pesquisa objetivou conhecer as experiências com a violência urbana através de entrevistas realizadas com 17 pessoas – vítimas e pessoas que com elas mantinham diferentes graus de proximidade – por meio da metodologia de investigação em rede, em que os entrevistados indicavam outros que souberam da ocorrência. As entrevistas abordaram os seguintes itens de interesse: informações dos casos de violência e seus efeitos, bem como estratégias de enfrentamento da violência. Os dados, organizados através da Análise de Conteúdo, indicaram a presença de efeitos emocionais e comportamentais, como prevenção e mudança de rotina, sendo mais evidentes nas pessoas que souberam do ocorrido através da vítima; banalização da violência; sentimentos diversos em relação à vítima e ao agressor; descrença no sistema de segurança pública e prevalência de estratégias individuais no enfrentamento da violência, além do medo decorrente de um imaginário social onde a violência estaria prestes a acontecer.

Palavras-chave: violência urbana, efeitos da violência, segurança pública.

 

Resumen

El estudio examina las experiencias de la violencia urbana a través de entrevistas con 17 personas - víctimas y personas con las que tenían diferentes grados de proximidad - a través de la metodología de la red de investigación en la que los entrevistados indicaron que sabían de lo ocurrido. Las entrevistas abarcaron los siguientes temas de interés: información de casos de violencia y sus efectos, y las estrategias para hacer frente a la misma. Los datos, organizados por el análisis de contenido indican la presencia de efectos emocionales y conductuales, y la prevención y el cambio en la rutina, siendo más evidente en las personas que sabían del incidente por la víctima, la trivialización de la violencia, sentimientos diferentes hacia la víctima y a los agresores, la incredulidad en el sistema de seguridad pública y la prevalencia de las estrategias individuales para hacer frente a la violencia y el miedo resultante de una sociedad imaginaria, donde la violencia está a punto de suceder.

Palabras clave: violencia urbana, los efectos de la violencia, la seguridad pública

 

Abstract

The research aimed to learn about the experience with urban violence through interviews conducted with 17 people, victims and people who had different degrees of closeness, through the methodology of research in network, in which the interviewees indicated others that known of the occurrence. The interviews addressed the following items of interest: information of the cases of violence and its effects, as well as strategies to confront the violence. The data, organized by the Content Analysis, indicated the presence of emotional and behavioral effects, such as prevention and change of routine, and it’s most evident in people who knew what happened through the victim; trivialization of violence; different feelings in relation to the victim and the aggressor; disbelief in the system of public security and prevalence of individual strategies in the face of violence, in addition, the fear caused by an imaginary social that violence would happen now.

Keywords: urban violence, effects of violence, public security.


Definindo e conhecendo o fenômeno

A principal característica do conceito de violência talvez seja a polissemia, o que significa que pesquisadores com diferentes vinculações teóricas e metodológicas oferecem definições muitas vezes divergentes, algumas muito estreitas. Nas últimas décadas do século passado, cientistas sociais empenharam-se na realização de investigações que produzissem um conhecimento que articulasse os aspectos objetivos e subjetivos implicados na ocorrência de violência. Essa busca permitiu ampliar a magnitude do fenômeno permitindo-nos reconhecer a violência em contextos em que antes não era reconhecida. Para Chauí (1999), por exemplo, a violência é definida como:

1) tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar); 2) todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar); 3) todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar); 4) todo ato de transgressão contra o que alguém ou uma sociedade define como justo e como um direito (p.03).

O debate sobre a violência ampliou-se nos mais diversos setores da sociedade e, seja no campo acadêmico ou do senso comum, ele repousa na importância que o fenômeno adquiriu na vida cotidiana contemporânea. Alguns autores afirmam que nas grandes cidades a violência aumentou (Adorno, 1998; Hughes, 2004; Silveira, Silva & Beato, 2006), enquanto outros afirmam que o que cresceu foi a compreensão do fenômeno e/ou sua divulgação pelos meios de comunicação social. (Soares, 2005; Chenais apud Adorno & Lamin, 2006). Entre estes últimos podemos destacar também Michaud (1989) para quem “o fato de a opinião pública preocupar-se com uma crescente insegurança não tem, entretanto, nada a ver com o volume efetivo da criminalidade, mas sim com as normas a partir das quais são concebidos os fenômenos criminosos” (p.33).

O que se pode, definitivamente, afirmar é que há um consenso entre os estudiosos no que se refere à magnitude das conseqüências da violência, que são muito maiores atualmente. Roché apud Sá (2000) relaciona essas conseqüências à insegurança resultante da difusão do sentimento de medo cuja visibilidade se dá:

(…) ou como um estado psíquico passageiro ligado a um risco, ou como um medo difuso, que permanece para lá dos acontecimentos que o provocaram. É, com este segundo medo, que se associa uma sensação de angústia, ou de ansiedade sem objeto, que se vai construindo o sentimento de insegurança. (p.01)

Baierl (2004) esclarece que o medo se constitui como um sinal de alerta e aviso de perigo e que “as reações aos medos não são naturais, são reações aprendidas e condicionadas socioculturalmente” (p.39). Atualmente, a insegurança que decorre da difusão da violência é inquestionável e a autora indaga qual preço devemos pagar para evitar sentir medo. Esse “pagamento” acaba por ser naturalizado, de maneira que as pessoas não questionam seus comportamentos e emoções, elas simplesmente “alteram sua rotina, sua forma de ser no mundo, alteram as relações sociais…” (Baierl, 2004, p.40). Por outro lado, podem não ficar mais indignadas e aceitar o inaceitável, tentando, assim, superar o sentimento de insegurança.

Para Soares (2005) um aspecto que pode exacerbar a impressão do aumento dos fenômenos ligados à violência, é o fato de que mesmo que o número de crimes permaneça o mesmo, o número de vítimas sempre será aumentado: “Digamos que cem pessoas sofram algum tipo de agressão. Se a mesma quantidade de vítimas forem atingidas ao longo de cinco anos (cem por ano), não haverá aumento da criminalidade (...) Mas haverá crescimento do número de pessoas agredidas – depois de cinco anos, elas passarão a ser quinhentas.” (p. 179).

Considerando a relevância dos estudos que focalizam a difusão das experiências violentas (Souza & Lima, 2006; Hughes, 2004), esta pesquisa objetivou conhecer experiências com a violência urbana a partir do relato de vítimas e de pessoas que tomaram conhecimento do caso, de maneira a nos possibilitar melhor compreensão deste fenômeno e seus efeitos em uma rede de comunicação interpessoal.

 

Método

Participantes

Participaram da pesquisa dezessete pessoas adultas envolvidas em cinco casos de violência urbana, residentes em um bairro de classe média de Vitória, ES, sendo cinco vítimas e doze pessoas que tomaram conhecimento dos casos. As vítimas residiam no bairro escolhido para a pesquisa e os demais participantes poderiam residir em outros bairros.

A primeira vítima (Va) entrevistada é do sexo feminino, tinha 41 anos e era funcionária pública. Foi vítima de seqüestro-relâmpago. Nesse caso, foram entrevistadas outras três pessoas. P1a, 40 anos, sexo feminino, pedagoga. P2a, 43 anos, sexo feminino, advogada. E, por fim, P3a, 46 anos, sexo feminino, funcionária pública.

Vb, sexo feminino, tinha 24 anos e era formada em administração, trabalhava como autônoma. Foi vítima de tentativa de assalto. A pessoa indicada por ela, P1b, tinha 25 anos, sexo feminino e era empresária. P2b tinha 54 anos, sexo feminino e era aposentada. E, P3b, 61 anos, sexo feminino e sua ocupação era dona de casa.

O terceiro caso de violência abordado teve como vítima Vc que tinha 48 anos, sexo feminino e era proprietária de um restaurante no qual foi vítima de assalto. A pessoa indicada, P1c, tinha 19 anos, sexo feminino e era estudante.

O quarto caso de violência estudado foi assalto a um comércio (padaria) e teve como vítima direta Vd, 55 anos, sexo masculino, proprietário do estabelecimento. P1d, 53 anos, sexo feminino, era, juntamente com a vítima, sócia proprietária do estabelecimento. P2d, 52 anos, sexo feminino, era proprietária de um comércio próximo àquele assaltado. E, finalmente, P3d, 63 anos, sexo masculino, era aposentado.

O último caso de violência urbana estudado referiu-se a um assalto a um estabelecimento (salão de beleza) que vitimou a proprietária do estabelecimento: Ve, 38 anos, sexo feminino. Ve indicou P1e que tem 64 anos, sexo feminino, proprietária de uma fábrica de roupas. P2e tem 49 anos, sexo feminino e era consultora administrativa.

 

Técnica de Coleta

Os dados foram obtidos através da realização de entrevistas gravadas – com o consentimento prévio dos participantes, utilizando-se um roteiro semi-estruturado que focalizou os seguintes itens: 1) descrição da violência sofrida; 2) como obteve a informação do caso (exceto a vítima); 3) conseqüências comportamentais e emocionais da experiência; 4) sentimentos a respeito do agressor (e da vítima); 5) estratégias de enfrentamento da violência; 6) informações sobre a atuação do sistema de justiça nos casos vividos e/ou conhecidos; 7) avaliação sobre a atuação do sistema de justiça e de segurança pública; 8) outras informações a critério do entrevistado.

 

Procedimentos

Na presente pesquisa utilizou-se uma metodologia de investigação em rede como forma de verificar as conseqüências da violência a partir do relato de vítimas. O método consistiu em entrevista com a vítima, bem como com pessoas por ela indicadas que souberam do fato ocorrido, cada uma com um grau de proximidade diferente com a vítima. A cada entrevista com as vítimas pedia-se a indicação de duas outras pessoas para as quais haviam contado o fato. Destas, escolhia-se uma para ser entrevistada conforme a disponibilidade e a acessibilidade. Assim prosseguíamos até que o último entrevistado dissesse que não havia contado para mais ninguém ou “não se lembrava para quem tinha contado”. 

Os sujeitos da pesquisa (vítimas e demais pessoas) foram indicados por meio de entrevistas realizadas com moradores antigos do bairro estudado com os quais tivemos contato por meio de lideranças das organizações sociais ali existentes. Os entrevistados foram solicitados a mencionar casos de violência recentes ocorridos no bairro, e desta forma, pôde-se contatar os participantes deste estudo. Aos participantes foram informados os objetivos da pesquisa e solicitada a leitura e assinatura do Termo de Consentimento.

Após a realização e transcrição literal de todas as entrevistas, os dados obtidos foram organizados usando-se como guia a análise de conteúdo temática proposta por Bardin (1995).  Após a exaustiva leitura do material, os dados foram organizados por temas e categorias que se originaram do material. O conjunto de categorias obtidas indica a direção de sentidos originados pelas experiências relatadas pelos participantes.

 

Resultados

Conseqüências da violência

No que concerne às experiências vividas pelas vítimas dos casos de violência estudados, observou-se a emergência de uma visão diferente daquela que considera que as vítimas sofrem maiores agravos. Nos casos estudados, verificou-se que todas as pessoas que souberam do ocorrido pela própria vítima (P1a, P1b, P1c, P1d e P1e) demonstraram uma sensibilidade maior à situação, sensibilidade que pode ser decorrente das ligações afetivas com as vítimas, bem como de um imaginário social que difunde insegurança.

“Eu senti isso, eu senti muita insegurança, não dormi direito, fiquei impressionada. Toda hora eu ficava tentando imaginar a cena do que ela passou. ‘Como que será que foi?’” (P1a)

 “...eu fiquei abaladíssima com esse negócio que aconteceu com a L.” (P1b)

É interessante notar que grande parte dos entrevistados, ao relatar o caso de que obteve conhecimento, fazia menção a outros casos de violência que aconteceram com pessoas próximas, seja no bairro pesquisado, seja em outros bairros.

“…eu tenho um primo que morreu por causa de um relógio subindo na escada do ônibus, (...) aí o cara puxou, aí como ele viu que tava caindo, ele puxou o braço do cara de volta e o cara deu 6 tiros nele...” (P1b)

 “E passaram-se uns dias, o meu filho foi assaltado aqui na porta de casa, também. Veio de cueca, com camisa, levaram a calça, levaram o tênis, levaram o celular...” (P2b)

“…eu já tive duas sobrinhas que sofreram seqüestro-relâmpago e uma foi solta no contorno de C.  às seis horas da manhã.” (P3a)

Com essa sensação generalizada de insegurança as pessoas passam a adotar estratégias para se protegerem e protegerem as pessoas que estão mais próximas, ou mesmo seus ambientes de trabalho.

 

Estratégias de enfrentamento da violência

Em relação às estratégias de enfrentamento da violência, foram identificadas basicamente estratégias individuais similares às reivindicações genéricas por mais policiamento e proteção, como a contratação de segurança privada, o uso de tecnologia para proteção das residências e carros (portões eletrônicos, alarmes, cercas elétricas, grades).

“Eu, individualmente, aqui, tenho botado todas as precauções aqui dentro da casa, de segurança. Na rua, a gente está na mão de Deus.” (P1e)

“…a gente tem grade na casa né, cachorro, essas coisas, porque a situação da violência ta difícil.” (P3b)

É importante ressaltar que algumas das estratégias são utilizadas não apenas para proteção pessoal, mas decorrem de preocupações com familiares, especialmente os filhos e netos. Em alguns casos podemos notar que ocorre cerceamento da liberdade e se estabelece uma vigilância constante, principalmente em relação às crianças.

“(…) eu fico assustada, porque eu tenho três filhos jovens e a gente pensa sempre nos filhos ‘da gente’.” (P3a)

“…o meu filho não brinca mais na pracinha porque eu não tenho coragem de deixar.(…) eu faço questão da casa porque é grande, então eles não precisam sair de casa pra se divertir, tem tudo o que eles precisam dentro de casa.” (P1b)

O que se pode destacar é que são adotados comportamentos de precaução após o conhecimento dos casos. Como, por exemplo, maior atenção quando presentes em locais mal iluminados, pouco movimentados ou pelo simples fato de estar fora de casa.

“Se eu saio de carro eu estou sempre olhando antes de entrar dentro de casa, eu estou sempre observando da minha casa, que é no terceiro andar, eu estou sempre observando a rua, sempre olhando quem está correndo e isso eu sempre fiz. Se eu paro num sinal, quando eu estou dirigindo, eu sempre olho nos retrovisores se está vindo alguém pra eu arrancar com o carro.” (Ve)

“Quando eu saio à noite, quando vou entrar em casa eu olho para os lados para ver se não tem ninguém, eu entro correndo... essas coisas que o máximo que a gente pode fazer pra evitar.” (P1c)

 

Banalização da violência

A partir dos relatos que as vítimas faziam sobre outras experiências violentas pôde-se detectar um sentimento de ‘banalização’ da violência. As narrativas do último episódio sofrido já faziam parte de um cotidiano em que a violência era mais uma possibilidade de vivência cotidiana, como tantas outras. Assim, pareceu-nos que conviver com a violência era apenas uma situação quase como outra qualquer.

“Para mim virou, já virou banal… quando eu tinha padaria em ... também já fui assaltada várias vezes, então eu já estou calejada…” (Vc)

“O assalto aqui foi até engraçado… o cara chegou anunciando o assalto – até ri depois…” (Vc)

No entanto, essa banalização pôde ser identificada também em outros entrevistados cuja dificuldade para indicar pessoas para quem tivessem contado o caso de violência era considerável.

“Como eu trabalho nesse meio prisional, este foi mais um caso…” (P2a)

Também foi possível identificar uma estratégia de contenção do medo associado às experiências com a violência urbana, com reflexos na preservação dos espaços públicos. Um dos entrevistados nos informou que deixou de transmitir a notícia do acontecimento violento a outras pessoas com quem se relacionava, evitando que mais um, nessa rede, fosse afetado pelo relato da violência. Dessa forma, um fenômeno social e coletivo passa a configurar como algo particular, oculto, passível de ser estancado com o simples fato de não o transmitirmos a terceiros.

“…não quis contar para ninguém em casa. Evito falar desses assuntos com a família, especialmente com minha esposa, para que não fiquem com mais medo da violência.” (P3d)

 

Sentimentos em relação à vítima e ao agressor

Os sentimentos relacionados à vítima expõem um misto de ‘pena’ e alteridade. Os entrevistados procuravam se colocar no lugar da vítima, imaginando o que ela devia ter sentido. 

“…aí eu ficava imaginando: ‘E se fosse comigo?’, ‘Eu ia falar a mesma coisa?’, ‘Como é que eu ia reagir?’.” (P1a)

“…das vítimas a gente tem pena e medo por elas.” (P1c)

Entre os sentimentos manifestados pelos entrevistados em relação ao agressor predominam aqueles vinculados à idéia de ‘pena’ decorrente de uma avaliação da falta de oportunidades sociais que tiveram, embora tenhamos identificado também sentimentos de revolta em relação ao agressor.

“…o que eu senti em relação ao agressor, dele eu senti pena. Eu não senti revolta, eu não senti raiva…” (P1a)

“Às vezes, esses bandidos também pela criação, pelo mundo em que eles vivem, eles ficaram desse jeito, foi uma conseqüência.” (P1c)

“Eu queria muito pegar um moleque daquele pra eu bater muito, mas eu não podia reagir na hora, não podia tentar, porque eu não sabia se ele estava armado ou não.” (Ve)

 “Antigamente, não muito antigamente, eu achava que esse negócio de pena de morte não deveria existir, agora eu acho que tem que matar na hora! Tem que matar! Meu sentimento é esse (…) quanto mais bandido matar, melhor!” (P1d)

Foram também identificados conteúdos que colocam pessoas sob suspeição simplesmente por apresentarem determinadas características ou estarem numa posição ou situação ‘suspeita’.

“Já cheguei a ser xingada por alguém porque eu arregalei o olho, tomei um susto e a pessoa percebeu.” (P3a)

“Olha, eu pensei muito, e hoje em dia, todo mundo que eu vejo na rua é suspeito, é impressionante…” (P1b)

 

Atuação do Sistema de Segurança Pública

Quanto à atuação da justiça e do Sistema de Segurança Pública em geral, tanto as vítimas quanto as demais pessoas entrevistadas tiveram dificuldades em informar se houve, de fato, uma atuação. Contudo, nos casos em que foi mencionada a intervenção da polícia, ela foi avaliada como precária.

 “A polícia vem, mas depois que o bandido já ta longe, depois que o bandido sumiu.” (P1d)

Diante de uma avaliação negativa da atuação policial, uma parte dos entrevistados afirma que para evitar assaltos a estabelecimentos comerciais, torna-se necessária a contratação de segurança privada fato que comprova que mediante a ausência efetiva do Estado, as estratégias pessoais de enfrentamento da violência crescem.

 “…agora a gente contratou um segurança que fica aqui na frente porque feriado a cidade fica vazia, então o risco de assalto é muito maior, então a gente tem muito medo de ficar aqui sozinhos.” (P1c)

“Que, olha, a gente contratou um segurança, infelizmente quem paga é a gente porque quem tinha que ta pagando era o governo, era a prefeitura, não era a gente.” (P1d)

Quando foi solicitada uma avaliação sobre a atuação do Sistema de Segurança Pública, foi unânime tanto a descrença quanto a indicação da necessidade de mudança.

“(…) é muita violência pra pouca providência.” (P1a)

 “Nosso governo está sendo totalmente omisso e o povo ta cada dia mais refém da violência, mais refém do bandido. É humilhante. É degradante.” (P1d)

 

Discussão e Conclusão

Um primeiro aspecto que merece ser destacado no presente estudo foi a constatação da dificuldade para indicar pessoas para as quais o episódio teria sido contado, pois a expectativa era entrevistar pelo menos mais quatro pessoas além da vítima. Por um lado, esta constatação pode indicar certa banalização da violência, dado que as pessoas já convivem e se deparam com tantos casos, que a experiência (direta ou indiretamente) se torna “apenas mais uma”. Por outro lado, pode indicar a existência de um mecanismo de proteção de pessoas com as quais os participantes possuem laços afetivos, evitando que sintam medo nos espaços públicos, bem como a individualização dos pensamentos e sentimentos envolvidos na experiência da violência que se configura numa nova forma de sociabilidade da vida contemporânea. Essa individualização não está presente somente quando tratamos da violência, mas se relaciona mais genericamente ao contexto capitalista, individualista e competitivo no qual estamos inseridos (Costa, 1993).

Pôde-se verificar que nos cinco casos de violência descritos, os efeitos da violência são mais intensos na primeira pessoa indicada (P1a, P1b, P1c, P1d e P1e) do que na própria vítima. Nestes participantes observou-se maior abalo emocional, maior modificação de comportamentos, bem como uma sensação maior de insegurança, entre outros. Pode-se supor que esta intensidade maior dos efeitos da violência estaria sendo influenciada pela relação afetiva existente entre os participantes e as vítimas.

Nesse sentido, ao relatarem os casos que tiveram conhecimento, muitos participantes relembram de episódios de violência acontecidos com pessoas mais próximas a eles, suscitando, desse modo, uma sensação de insegurança geral que dá vistas às pessoas sentirem necessidade de falar sobre acontecimentos que lhes são mais próximos.

Dessa forma, verificou-se, portanto, que um imaginário social em que a violência estaria prestes a acontecer atingiu a todos os participantes, mesmo que tal fato não tenha sido vivenciado diretamente. A violência passa a se apresentar como uma ameaça constante, como “uma bomba prestes a explodir”, o que poderia causar sentimentos de medo. Michaud (1989) afirma que:

O sentimento de insegurança, que se encontra no cotidiano das discussões sobre o aumento da violência, raramente repousa sobre a experiência direta da violência. Ele corresponde à crença, fundada ou não, de que tudo pode acontecer, de que devemos esperar tudo, ou ainda de que não podemos mais ter certeza de nada nos comportamentos cotidianos. Aqui novamente a imprevisibilidade, caos e violência estão juntos (p.13).

Baierl (2004) diz que essas idéias (as quais chamou de ‘imaginativas’) constituem-se num sistema de medo, formando, assim, um ‘campo imaginário’. Este, por sua vez, é responsável, por exemplo, por relacionar imagens por semelhança. Ou seja, uma das características do imaginário acerca da violência é como mencionamos nos resultados, a caracterização da violência numa imagem, é suspeitar de qualquer pessoa que se assemelhe àquele agressor (tendo a pessoa contato direto com ele ou não).

Em suma, Costa (1993) procura esclarecer:

É daí que nasce o medo social, o pânico com características fóbicas. Posto que o inimigo está em todo lugar e pode apresentar-se nas situações mais imprevistas, sob qualquer aparência, tem-se que nomeá-lo e dar-lhe uma visibilidade imaginária qualquer. A palavra violência vira uma entidade. O invisível e imprevisível parecem dessa maneira corporificar-se. (p.86)

Por outro lado, para as vítimas que vivenciaram de forma direta a violência, a intermediação do imaginário parece ser desnecessária. O caso de violência não é vivido apenas como uma ilusão ou hipótese, mas sim concretamente, de forma mais conectada à realidade, o que não significa que seja vivenciado de modo menos impactante. Constata-se apenas que fantasiam menos e dramatizam menos o ocorrido.

Uma outra observação refere-se aos sentimentos dos participantes em relação ao agressor. Identificamos que tais sentimentos são ambíguos, oscilando entre a pena e a revolta, ambos referidos às desigualdades sociais do país, e conseqüentemente, à falta de oportunidades sociais e profissionais, aspecto já analisado por Hopenhayn (2002):

O aumento da violência e da preocupação pela segurança cidadã tem, nesse sentido, uma dupla relação com a vulnerabilidade: de um lado, gera na população uma sensação de ameaça à integridade física ou da propriedade; de outro lado, a violência delitiva é muitas vezes uma estratégia de sobrevivência dos próprios grupos vulneráveis diante da falta de alternativas para gerar renda e superar as carências básicas. (p. 15)

As características e os sentimentos relacionados ao agressor também podem ser identificados na análise de Hopenhayn (2002):

Visão que se tem do agressor: ‘O jovem, homem e de baixa renda encarna a possibilidade de uma agressão ou de um roubo. Padece do contágio de um fenômeno no qual ele está passivamente envolvido por coincidências socioeconômicas, etárias e de gênero’. (p. 15)

Essa ‘cara’ que Hopenhaym (2002) descreve tão consonante com a realidade é a oportunidade para o surgimento de preconceitos e determinismos que levam a conclusões e ações absolutistas. É o que afirma Costa (1993, p.85): “a expectativa do perigo iminente faz com que as vítimas potenciais aceitem facilmente a sugestão ou a prática da punição ou do extermínio preventivo dos supostos agressores potenciais.” (grifos nossos)

No que concerne às estratégias de enfrentamento da violência notou-se que no discurso das pessoas predominam as estratégias individuais generalizadas, como o uso crescente da Segurança Privada no bairro. Desta forma, o crescimento de soluções individuais decorre em parte das limitações da Segurança Pública, que deixam a desejar no que se refere à proteção do cidadão face à criminalidade, bem como pela necessidade de uma segurança efetiva durante as 24 horas do dia, o que não pode ser garantido pelo Estado de modo generalizado, além de uma Política Pública de Segurança considerada insatisfatória no município e no bairro estudado (Antunes, 2001).

A este respeito Adorno & Lamin (2006) apontam:

Em uma terra sem lei ou onde a lei se funda no emprego da força física que desconhece limites, as pessoas reagem. Fecham-se em suas casas, protegem-se com grades e muros, adquirem sistemas de segurança pessoal e seguros de toda espécie. Procuram viver no anonimato. Evitam circular nas ‘zonas de perigo’, adotam precauções na vida cotidiana. (p. 153)

Izumino e Neme (2002, p.22) indicam que o medo crescente da população frente ao fenômeno da violência, também está associado a uma "… ausência de respostas por parte das polícias e da justiça, que se expressa no despreparo das forças policiais para o enfrentamento do crime e nas altas taxas de impunidade.”, o que certamente se reflete na avaliação que os participantes fazem da atuação do Sistema de Justiça e do Sistema de Segurança Pública.

As pessoas entrevistadas consideram insatisfatórias as ações do sistema judiciário, bem como da Polícia, o que pode aumentar a descrença da população nos referidos órgãos e a sensação de insegurança. Tais aspectos contribuem de forma importante para a criação de um imaginário social centrado no medo, na insegurança e no descrédito dos órgãos de Segurança Pública.

Este medo e insegurança, gerados pela experiência com a violência, só efetivamente serão enfrentados por meio de ações integradas dos órgãos de segurança pública, como sugere Baierl (2004), em articulação permanente com as formas organizadas da sociedade civil. Assim poderemos “vislumbrar estratégias de ação para reduzir os índices de violência e criminalidade e a sensação de medo, aumentando a potência das pessoas para agirem coletivamente” (p. 208).

 

REFERÊNCIAS

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