Humano 2.0? Contribuições da Psicologia Social Crítica no debate sobre a ‘fabricação de indivíduos’ proposta pela Engenharia Genética

 

Aluísio Ferreira de Lima

Universidade Federal do Ceará (UFC)
(Brasil)

 

 

RESUMO

Este artigo propõe reliazar uma discussão acerca das implicações da técnica genética no desenvolvimento dos indivíduos. Para isso partiu-se da Psicologia Social Crítica, propondo entender o fenômeno não apenas no seu aspecto instrumental, mas sim, todo o contexto no qual o indivíduo que está inserido, do mercado de consumo, dos diagnósticos e tratamentos; com a proposta de apresentar uma contribuição tanto teórica, quanto política da psicologia. Finalmente, o presente trabalho tece algumas reflexões sobre a questão da engenharia pré-pessoal e as possibilidades de empedimento da emancipação.

Palavras Chave: Psicologia Social, Emancipação, Genética, Identidade, Sociedade.

 

ABSTRACT

This paper intends make a consideration about the results of genetical engineering in private development. To do so, we start from the Critical Social Psychology, considering to understand not only the phenomenon in its instrumental aspect, but, all the context in which the individual that is inserted, of the consumption market, of the diagnostic and treatments; with the proposal to present a contribution in such a way theoretical as political of the psychology. Finally, this work weaves some reflections on the question of genetical engineering and the possibilities to limits of emancipation.

KEYWORDS: Social Psychology, Emancipation, Genetic, Identity, Society.

 

RESUMEN

Este trabajo intenta hacer algunas consideraciones acerca de los resultados de la ingeniería genética en el desarrollo privado. Para eso, se parte de la Psicología Social Critica, teniendo como foco entender no solo el fenómeno en su aspecto instrumental, mas pero todo contexto en cual se inserta la persona, el mercado el consumo, el diagnósticos y los tratamientos, con la propuesta de presentar una contribución tanto teórica como política de la psicología. Finalmente, este trabajo presenta algunas reflexiones sobre la cuestión de la ingeniería genética y las posibilidades de limitaciones de la emancipación humana.

Palabras claves: psicología social – emancipación – genética – identidad – sociedad.

 

 

O esquecimento da exterminação faz parte da exterminação, pois o é também da memória, da história, do social etc. Esse esquecimento é tão essencial como o acontecimento, de qualquer modo impossível de encontrar para nós, inacessível na sua verdade. Esse esquecimento é ainda demasiado perigoso, é preciso apagá-lo por uma memória artificial...

Jean Baudrillard

I

Presenciamos cada vez mais pelos meios midiáticos os avanços da ciência, Horkheimer & Adorno em sua Dialética do Esclarecimento(1985), já diziam que a indústria cultural faz um grande esforço para que as descobertas da ciência cheguem ao nosso encontro com a velha promessa de saída para os sentimentos de desprazer. Atualmente, novos campos da ciência têm sido explorados, principalmente com o desenvolvimento da informática, a telemática, a robótica etc, criando inclusive projetos voltados para o desenvolvimento da Inteligência Artificial.

O próprio conceito de realidade é ampliado, podendo-se dizer inclusive que vivemos em uma época na qual passamos a vivenciar uma “realidade encarnada” e uma “realidade virtual”, a era do imaterial (GORZ, 2005) em que a dimensão imaterial dos produtos se sobrepõe a realidade material deles; seu valor estético, simbólico, social prevalece, sobre seu valor prático. A época que até o capital se tornou virtual, fato passível de ser observado no dia-a-dia ao lermos nos jornais o aumento e queda da bolsa de valores, que refletem imediatamente na economia mundial.

O crédito eletrônico, pelo qual transações são feitas pela rede informatizada, demonstra o quanto a materialidade do dinheiro passou a ser desnecessária nas relações de compra e venda. Na mesma direção, a internet possibilitou a presença dos indivíduos em qualquer parte do mundo, em questão de segundos, em tempo real. Negócios são fechados, compras são feitas, relacionamentos pessoais, como o namoro e o casamento, já são possíveis por meio do computador, podemos inclusive, ir ao banco fazer transferências, retirar extratos etc., dentro de nossas casas.

Somos praticamente cyborgs, como apontado por Haraway (1995, p. 255),cuja diferenciação do que é corpo e o que é máquina passa a ser uma tarefa cada vez mais complexa.Na “nossa era, um tempo mítico –, todos somos quimeras, híbridos teorizados e fabricados de máquinas e organismos.” Sendo que os implantes de órgãos artificiais, as próteses e afins passam a ser mais um acessório a acompanhar o celular, laptop e ipod; um exemplo ilustrativo que parece interessante de ser trazido é a “moda do silicone’, em que o símbolo de feminilidade passa ser a da mulher com tecnologia incorporada: silicone, botox, lipoaspiração etc.

Inserido nesse campo de tensão entre os apaixonados pela tecnologia, pelo aperfeiçoamento do humano, pela criação do humano 2.0, e das resistências daqueles indivíduos “mais tradicionais”, que defendem o humano in natura, experiênciamos a discussão acerca da clonagem humana (desde sempre um campo minado, principalmente no que se refere ao debate entre a ciência metafísica e cética). E embora saibamos que a clonagem humana ainda esteja distante da nossa realidade, seja pela falta de tecnologia ou por questões do direito, esse é um dos temas do momento, na medida que as empresas não têm despresado esforços no desenvolvimento dessa tecnologia. Aja visto a polêmica desde a publicidade gerada pela empresa norte-americana Celera, ao anunciar o Projeto Genoma como a pesquisa mais importante já desenvolvida na história, e que este laboratório iria realizá-la de maneira mais rápida e barata, sendo os resultados “doados” para a humanidade.

Um discurso no mínimo duvidoso se considerarmos que no mundo capitalista tudo é transformado em mercadoria e que os institutos de pesquisa genética são, antes de tudo, empresas financiadas pela indústria farmacêutica (que lucram com a doença ao ponto de negar a produção de medicamentos genéricos para HIV às pessoas portadoras da doença em países como a África, por exemplo).  Inclusive, entrevistas como a que John Sulston cedeu para a revista Ciência Hoje, apresentam elementos que reforçam nossa desconfiança em declarações como essas feitas por Corporações como a Celera. Sulston ao ser questionado sobre a razão que guia a escolha dos problemas de pesquisa nessas empresas é enfático ao responder que:

 

(...) não há qualquer interesse em obter a cura para a doença de Chagas ou para a malária: os investimentos não existem porque não há retorno financeiro garantido. Ou seja, em todo o genoma humano, há áreas que são minas de ouro em potencial, e essas companhias estão tentando dominá-las. A maior parte dos genes – justamente aqueles que precisam ser mais estudados – , não é útil para a obtenção de patentes. (FURTADO, 2004, p. 09).

O que esse cientista aponta é que determinadas doenças são mercadorias mais lucrativas do que outras, ficando a exploração das “minas de ouro” subordinado aos interesses dos financiadores, sendo assim, qual seria o interesse em se descobrir cura para outras doenças, como por exemplo a diabetes, sendo que os “sujeitos” a essa patologia dedicam suas vidas, ao mercado farmacêutico, seja na compra de medicamentos, dietas, produtos dietéticos etc.? Um outro trecho da entrevista demonstra muito bem como o mercado das patologias constroem as necessidades humanas.

Se olharmos para o orçamento das 10 maiores do mundo, como por exemplo a Pfizer, encontraremos de 10% a 14% alocados para pesquisa e desenvolvimento, enquanto cerca de um terço – ou até metade – vai para marketing e administração. Essas empresas não são companhias cientificas, mas sim de marketing. (FURTADO, 2004: 10)

Esse tipo de informação reforça o posicionamento de Adorno (1996, p. 48), para quem “as pessoas dedicam-se à ciência enquanto alguma coisa a financia. Mas não confiam nem em sua importância nem na obrigatoriedade de seus resultados”, no capitalismo avançado, na modernidade tardia, o princípio do desempenho torna-se um fim em si mesmo, negando o fundamental: os indivíduos. Crochik (1990, p. 153), compartilhando o ponto de vista de Adorno, nos ensina que:

Como o desenvolvimento tecnológico converte-se num fim em si mesmo, o tempo, a história, são dominados imaginariamente, vive-se somente o presente, pois o futuro torna-se o presente sofisticado e o passado converte-se em obscurantismo. Sem a noção do tempo e da história, a busca da Utopia e, portanto, a ruptura com a natureza repetitiva não existe. Tudo é reduzido ao mesmo. O idêntico e a identidade são objetivados e separados daquilo que poderia constituir num ‘eu’.

Aqui introduzimos nosso tema, que parte do seguinte pressuposto: se o desenvolvimento tecnológico, sobretudo a técnica genética, dirige seu foco para a engenharia pré-pessoal buscando projetar e controlar características como: cor dos olhos, cabelo, sexo etc., sendo por excelência uma prática com forte tendência fascista, podendo ressucitar antigas práticas eugênicas que até pouco tempo estavam em vigor (só que desta vez, a discriminação será dada a partir da justificativa genômica, a partir da separação entre os indivíduos projetados, aperfeiçoados e comuns), é necessário um posicionamento crítico das ciências humanas.

Não podemos deixar de considerar que diversas disciplinas, dentre elas o direito, a bioética, a biologia, a filosofia etc., têm se aproximado do debate, discutindo sobre a ética e os limites que devem ser dados para as pesquisas que envolvem a genética, assim como, dos possíveis impactos na vida pré-pessoal, pessoal e de comunidade. Contudo, faz-se mister que assumamos uma posição política ativista frente ao tema, no caso da psicologia, que esta possa se colocar criticamente e avaliar os possíveis danos causados pelas intervenções eugênicas na vidas das pessoas; ao invés de esperar para “tratar” dos diversos danos causados por elas, danos que já aparecem no nosso cotidiano por conta das diversas intervenções tecnológicas na vida dos indivíduos.

Nesse sentido, concordando com o posicionamento de Habermas (2001a, p. 100) que parte do princípio de que “se a técnica brota da ciência (...), então a introdução dessa técnica no mundo da vida (...), exige antes de tudo uma reflexão científica”, motivamo-nos, mesmo que de forma modesta e ensaística, a realizar algumas reflexões acerca das práticas eugênicas, sobretudo àquelas que buscam o aperfeiçoamento pré-pessoal. Para tanto, partiremos da Psicologia Social Crítica, que tem dentre suas premissas básicas a adoção de uma postura libertária, que parte da crítica das bases epistemológicas da psicologia, da discussão do potencial de transformação ou manutenção da realidade a partir da produção científica e utiliza-se das contribuições advindas da virada linguística e do pensamento pós-metafísico.

 

II 

Antes de entrar na discussão acerca das práticas eugênicas, tornar-se necessário algumas colocações acerca do ponto de vista pelo qual iremos tratar nosso problema. Afinal, como pensar uma Psicologia que possa entender uma sociedade complexa como a nossa? Nos parece que somente a partir de uma Psicologia que se proponha a repensar sua história, que se proponha a pensar criticamente sua prática, que retome o conceito de práxis como prática transformadora da realidade. Uma psicologia diferente não apenas à psicologia positivista norte-americana do início do século, mas também a psicologia experimental e a psicanálise clínica, que focando a resolução dos problemas do indivíduo isolado, esquece-se de sua relação com o todo, de sua impossibilidade de separar-se das influências sociais, da privação, do poder de ser sujeito resultante da imposição da socialização nos moldes da sociedade de massas, que oferecendo experiências ilusórias substitutivas, fraudam a capacidade de experienciar o real.

Uma Psicologia que mantenha relação interdisciplinar com a Filosofia, Sociologia, História, Epistemologia etc., que possa pensar em uma realidade na qual não existe a separação indivíduo-sociedade, que assuma uma postura crítica, entendida como aquela que “contrapõe-se ao ativismo cego, da mesma maneira que se opõe a aversão militante contra a ciência e a reflexão teórica, bem como aquelas atividades que sob a fachada do novo, do inédito e do emergente, somente repõe o velho ou aquilo que está posto” (SAAS, 2001, p.149).

É uma Psicologia como essa pretendemos utilizar aqui, pois já falamos no início que iremos trabalhar nosso problema a partir da perspectiva da Psicologia Social Crítica, todavia, na medida que essa tem uma forte articulação com outras áreas do conhecimento é importante apresentar o pano de fundo no qual essa psicologia está inserida. Primeiramente é importante dizermos que adotamos a perspectiva habermasiana que entende vivermos uma modernidade tardia que sofre a colonização de seu mundo da vida pela lógica sistêmica. Ou seja, de uma Razão Instrumental, que predomina no "Sistema", isto é, nas esferas da economia e da política (Estado) que, com o processo de modernização capitalista, tem tentado a todo custo colonizar o mundo da vida. Mundo da Vida que é constituído pelos elementos da cultura, sociedade e personalidade.

A Cultura como reserva do conhecimento alimentada pelas interpretações lingüísticas e pela tensão entre os conteúdos da tradição e da modernidade; a Sociedade composta de ordens legítimas, as quais os participantes de processos comunicativos regulam seu pertencimento a grupos sociais e Personalidade como um conjunto de motivações que inspiram o indivíduo à ação e produz Identidade.

O mundo da vida apresentado por Habermas é estruturado através das tradições, instituições, identidades surgidas a partir dos processos de socialização e individualização e mediadas pela linguagem. Uma linguagem entendida como construtora, descontrutora e reconstrutora de sentidos e representações de mundo, em que um signo pode remeter para uma profundidade de sentido, sendo que esse signo está em um ponto de tensão entre a vontade (desejo) e a representação das coisas.

 Também consideramos aqui a perspectiva da “Simulação” trazida por Baudrillard (1991), que entende vivermos atualmente uma cooptação estratégica da representação. Na qual com a autonomização midiática o real passa a ser deflacionado, minimizado; a verdade passa ser o que pode ser explicado pela mass midia, surgindo um problema:

Produção desenfreada de real e de referencial, paralela e superior ao desenfreamento da produção material: assim surge a simulação na fase que nos interessa – uma estratégia de real, de neo-real e de hiper-real, que faz por todo o lado a dobragem de uma estratégia de dissuação. (BAUDRILLARD, 1991, p. 14)

Sendo assim, que a junção desses dois autores na nossa discussão permite ampliar o campo de análise, ao ponto de podermos inferir que atualmente o mundo sofre a influência da colonização do mundo da vida pela lógica sistêmica, pela razão instrumental, mas que esta se utiliza de um modo de colonização mais sofisticado; ao ser auxiliado pela mídia o sistema passa a colonizar alem das formas de vida, também o imaginário e constrói uma realidade inevitável que se apresenta (simulada) como cheia de grandes possibilidades de subversão, sendo um obstáculo para a ação comunicativa, para o entendimento.

Temos então uma lógica sistêmica aperfeiçoada, máquina do capital, que é a expressão máxima daquilo que Marx descreveu como a transformação do trabalhador em mercadoria, o estado em que o indivíduo não reconhece mais a relação entre seu trabalho e o capital, porque se tornaram alienados das realidades do trabalho, da mesma forma que não reconhecem que são forçados a trabalhar, acreditando que operam num mercado livre, vendendo seu trabalho livremente, não enxergando que já incorporaram a exploração como uma natureza humana e, a produção e consumo como objetivo de existência.

Como se estivéssemos naquelas histórias infantis em que o feiticeiro diz para o mocinho que basta atravessar o labirinto para tornar-se livre, sem revelar para o mesmo que na verdade ele entrará em um labirinto que muda de posição constantemente, sendo que a única opção para o mocinho é entender a lógica inversa do mesmo, ou seja, enxergar a liberdade nos locais que aparentemente são saídas opressoras e, por outro lado, enxergar a opressão nas aparências de liberdade. Essa lógica sistêmica tenta a todo custo manter um simulacro perfeito da realidade, a vida boa criada pelos especialistas; tenta tamponar o real, sendo que a mídia é sua grande aliada na medida que apresenta na intimidade do lar, pela televisão, e agora pela internet, apenas aquilo que sustenta a simulação. Nessa condição, as patologias também são construídas, assim como sua “cura”, como diria Bourdieu (2004), os falsos problemas passam a ser preocupação dos especialistas. Baudrillard faz uma análise interessante desse fenômeno ao colocar que:

As pessoas já não se olham, mas existem institutos para isso. Já não se tocam, mas existe a contactoterapia. Já não andam, mas fazem jogging etc. Por toda a parte se reciclam as faculdades perdidas, ou o corpo perdido, ou a sociabilidade perdida, ou o gosto perdido pela comida. Reinventa-se a penúria, a ascese, a naturalidade selvagem desaparecida: natural food, health food, yoga. (BAUDRILLARD, 1991, p. 22)

De forma semelhante, Habermas afirma que vivemos sob a ameaça de uma ciência cega na qual as diversas possibilidades de ser da sociedade convertem-se no aperfeiçoamento técnico de um sistema altamente gratificador, por meio das mercadorias que oferece. Nesse sentido, os problemas sociais tornam-se problemas técnicos, são reduzidos a esfera individual, como se fossem produzidas pelo organismo humano.

Assim, pode-se agredir o diferente através de preceitos da normalidade científica. A antinomia endogrupo-exogrupo é expressada por outras antinomias: normal-anormal, capaz-incapaz, mas sem o ódio visível do preconceituoso e com a frieza de um cientista frente ao espécime observado. (HABERMAS, 1990, p. 153)

As análises trazidas por esses autores possibilitam um olhar para além da aparência de liberdade simulada, que como pôde ser visto no decorrer dessas páginas, na modernidade tardia vive o alge de sua representação.  Parece que o mundo da vida vai perdendo suas forças na medida em que a racionalidade instrumental aumenta a sofistição de suas próteses, fazendo com que encontremos uma grande dificuldade para lidar com as patologias da modernidade, tornando os problemas questões de difícil solução.

Mas lembremos que ainda estamos lidando com a análise de indivíduos e grupos que sofrem a ação da lógica sistêmica em suas vidas, na sua busca particular de destino e projeto de vida; entrando definitivamente em nosso tema, como seria a consciência de liberdade do indivíduo projetado e produzido geneticamente? Como ele lidaria com esse mesmo sistema que interfere na sua pré-existência? Talvez a resposta mais rápida para essas questões seria: aquela própria do ideal capitalista, que entende o indivíduo separado da sociedade, cada vez mais fácil de ser alienado.

 

III

Sabemos que faz grande diferença entendermos a configuração genética como resultado de um processo casual da natureza, indeterminado, ou, metafisicamente como resultado de uma determinação divina, da mesma forma sabemos que a diferença na concepção acerca daquilo que nos faz humanos interferem em nossa existência, implica na nossa liberdade de tomar decisões autônomas. Isso faz com que Habermas (2001b, p. 210) infira que “somos responsáveis por todas as nossas ações, apesar de não dispormos em nada sobre a essência nuclear da nossa construção e sobre as qualidades herdadas” e que algumas pessoas podem compreender isso como o destino, tendo de  “aceitar” seu fardo, e outras como um desafio de “ser aquele que gostaríamos de ser”, uma contingência entendida tanto no contexto religioso (que não trataremos aqui), quanto no sentido pós-metafísico.

O importante de ser destacado aqui é que o fato da ordenação genética ser obra do acaso, e consequentemente, nos tornar singulares geneticamente, faz com que contraditóriamente nos situemos em um patamar de igualdade perante o outro, visto a impossibilidade da existência do ser humano ideal. No caso da engenharia genética, mais precisamente das práticas de aperfeiçoamento humano, ocorre uma idealização acerca do humano ideal, como nas literaturas de ficção científica de séculos passados e do século XXI que projetavam o homem perfeito, imortal, construído por técnicas de simulação, e que pensa, sente e imagina um mundo infinitamente melhro do que o nosso.

O nascimento de um homem perfeito que estaria em “grande saúde”, isto é, de quem uma “prescrição” retiraria toda doença hereditária antes mesmo de ele ter nascido e toda a predisposição de ser acometido por qualquer outra doença. Prescrição no sentido médico, evidentemente, mas que teria de particular o fato de, longe de curar a posteriori, curar a priori, na ausência de todo o sintoma. (SFEZ, 1996, p. 21).

Uma autoridade muito próxima a que observamos no direito, em que a lei precede a ordem, só que tal autoridade, no caso da engenharia genética, caindo sobre um indivíduo que ainda não existe em sua forma de homem, aparecendo o levantamento acerca de sua legitimidade. Poderíamos nos perguntar se seria compatível com a dignidade humana ser gerado mediante ressalva, somente após um exame genético, ou ainda, se seria aceitável a adoção de medidas fascistas, justificadas pelo discurso tecnológico/científico. Lembremos que existem posições que defendem o avanço dessa ciência cega, justificando que os indivíduos (adultos pagantes) teriam o direito à liberdade de escolha sobre a melhor maneira de viver sua vida, e conseqüentemente, escolher os melhores meios para isso.

            Concordamos plenamente que os indivíduos devam ter cada vez mais autonomia para escolher os projetos de vida, da mesma forma, sabemos que a própria “ciência e a técnica estiveram até o momento informalmente aliadas ao princípio liberal de que todos os cidadãos devem ter a mesma chance de moldar sua própria vida de maneira autônoma.” (HABERMAS, 2004, p. 35). Todavia, essa racionalidade do projeto liberal, ao nosso entendimento, torna-se comprometida quando essa pretensa “autonomia” passa a interferir no projeto de vida de outro ser humano.

            E se até este momento a ciência podia controlar apenas os objetos e manipulá-los de maneira a obter o resultado esperado, a partir da engenharia pré-pessoal, a ciência passa a utilizar o homem enquanto objeto/mercadoria, podendo posteriormente vendê-lo como um produto para outro. Essa mudança pode interferir ainda mais nas relações dos homens com outros homens, educados nos moldes capitalistas, criariam as categorias: “aperfeiçoado” e “não-aperfeiçoado”, fato inevitável na sociedade que tudo o que toca transforma em mercadoria (aproximando-se muito do mito do rei Midas, que tudo o que tocava virava ouro). É provável que, apropriando-se das tendências de mercado, a engenharia pré-pessoal vire mais um negócio e passe a ditar o modelo de ‘indivíduo ideal’ para a próxima década, como já é feito com a moda, na qual é estipulado a priori o modelo de roupa a ser ‘comprado/utilizado/descartado’ na próxima estação.

Com relação as questões subjetivas, a literatura clínica da Psicologia já há muito demonstra a problemática de pais que projetam em seus filhos suas frustrações e desejos, buscando transformar esses filhos naquilo que os primeiros não conseguiram ser. Uma pré-determinação na qual muitos desses filhos jamais conseguem sair, outros indivíduos, por sua vez, conseguem superar esses projetos, seja por si mesmos ou por meio de análise pessoal devido a impossibilidade do projeto pré-pessoal, o fato da combinação dos genes serem obra do acaso, proporciona uma posição de singularidade (ao mesmo tempo que nos coloca em uma posição de igualdade, dados que todos são diferentes).

Isso abre possibilidade para o indivíduo pensar o que quer fazer da sua vida e questionar o papel dado pelos pais, o projeto dado por outro. Aqui uma outra questão em relação com a engenharia pré-pessoal: como o indivíduo poderia negar ser aquilo que seus pais pagaram para ele ser?

 

IV

Baudrillard trabalha com a idéia de que a partir da concretização da engenharia pré-pessoal os modelos já não constituirão uma transcendência ou uma projeção, os indivíduos “já não constituem um imaginário relativamente ao real, são eles próprios antecipação do real, e não dão, pois, lugar a nenhum tipo de antecipação ficcional – são imanentes, e não criam, pois, nenhuma espécie de transcendência imaginária.” (1991, p. 152). Nesse sentido, se até então a ciência capitalista tentou descrever o humano perfeito, com a saúde perfeita, apoiando-se no humano in natura, e que esse nicho de mercado já cria uma condição de comercialização de produtos e serviços, instituições de correção e controle, a partir do humano 2.0 a intervenção, o controle e a comercialização será dada como um elemento a priori.

Com a pretensão de curar algo que sequer os indivíduos desenvolveram, surge a fantasia da humanidade perfeita, que nega a todo custo que o humano é resultado do cruzamento de seu corpo biológico, com a sociedade em que está inserido e sua relação com outros seres humanos, e que até mesmo muitas das doenças que supostamente poderiam ser prevenidas ainda antes do seu desenvolvimento, dependem de outros fatores além de sua constituição genética: hábitos, alimentação, condições climáticas, de exploração etc.

O ser geneticamente individualizado no ventre materno, enquanto exemplar de uma comunidade reprodutiva, não é absolutamente uma pessoa ‘já pronta’. Apenas na esfera pública de uma comunidade lingüistica é que o ser natural se transforma ao mesmo tempo em indivíduo e em pessoa dotada de razão. (HABERMAS, 2004, p.49).          

A intervenção pré-pessoal privaria os indivíduos de lidarem com as “prováveis”, mas não certas, dificuldades no futuro; e isso poderia comprometer seu grau de responsabilidade e autonomia. Habermas (2004, p. 87), vai dizer que as intervenções de aperfeiçoamento pré-humano prejudicam a liberdade ética na medida em que “submetem a pessoa em questão a intenções fixadas por terceiros, que ela rejeita, mas que são irreversíveis, impedindo-os de se compreender livremente como o autor único de sua própria vida.” Voltando a colocar que essa prática reforçaria ainda mais a desigualdade, a exclusão e a estratificação social, entre os ‘aperfeiçoados’ e àqueles que não teriam como “comprar” o “eu” ideal.

As questões trazidas ao longo do nosso breve trabalho demonstram que  a ética não deve separar-se das questões materiais, sobretudo àquelas que intereferem diretamente no modo que entendemos os seres humanos, principalmente quando essas práticas podem, ao invés de criar maiores condições de sociabilidade, aumentar significativamente a desigualdade e exclusão social, como defende Baudrillard (1996, p. 69), em um espaço superprotegido, “o corpo perde todas as suas defesas”.

Freud (2002, p. 37) foi muito enfático quando colocou que “nunca dominaremos a natureza, e o nosso organismo corporal, ele mesmo parte dessa natureza, permanecerá sempre como uma estrutura passageira, com limitada capacidade de adaptação e realização”. Nesse sentido, devemos ter sempre em mente que o que nos faz humanos é nossa capacidade de lidar com os problemas, muito mais do que negá-los com a fantasia que é possível criar uma sociedade ideal para indivíduos ideais, no qual todo o resto não passará de uma massa indesejável, lembremos que avançar tecnologicamente não é garantia de liberdade.

Desse modo, esperamos que o conteúdo trazido ao longo do ensaio possa servir de provocação para maiores pesquisas acerca do tema, da mesma forma, que esperamos ter demonstrado, mesmo que de forma modesta, a pertinência e possibilidades de análise da Psicologia Social Crítica nas discussões das pesquisas eugênicas, e com isso, ter apontado seu lócus, que seria procurar desvelar os elementos que impedem o indivíduo de perceber a irracionalidade científica e, com isso, resistir aos apelos da mercado.Finalmente, demonstrando que as práticas eugênicas, longe de proporcionar a liberdade prometida, representam o aperfeiçoamento das práticas fascistas, ao passo que aniquilam o diferente, o “desviante” e valorizam o modelo de ser humano produzido nos moldes do higienismo da sociedade de produção e consumo, da saúde perfeita, da simulação.

 

Notas

Utilizada por Habermas tanto para designar a formação social como um todo, quanto para se referir a parcela que esta ocupa na produção da solidariedade.

BIBLIOGRAFIA

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