Subjetividade e acidente de trabalho no contexto contemporâneo



Departamento de Psicologia Experimental e do Trabalho
UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(Brasil)

 

Resumo

Este artigo realiza uma breve análise sobre a situação do mundo do trabalho contemporâneo levando em conta as estratégias de poder e dominação que se escondem atrás da organização do trabalho e que acabam por levar ao acidente de trabalho e às demais conseqüências para a saúde do trabalhador. Busca-se ainda, realizar uma leitura de como a objetividade e a subjetividade dos trabalhadores encontram-se capturadas pelo modo de produção capitalista, tornando menos acessível a consciência, a mobilização política e o exercício da cidadania. Verifica-se como conseqüência o desrespeito aos direitos e a violência imposta aos trabalhadores, que passam a ver no trabalho um lócus de sofrimento e degradação das relações. Nota-se como o acidente de trabalho é um indicador importante da opressão e violência, denunciando a brutalidade do capitalismo inserida nas empresas através da organização do trabalho, que com estratégias manipuladoras tenta ludibriar os trabalhadores, tornando-os “colaboradores” passivos e alienados.

Palavras chave: saúde do trabalhador; acidente de trabalho; subjetividade.

 

Resumen

Este artículo realiza un breve análisis sobre la situación  del mundo del trabajo contemporáneo llevando en cuenta las estrategias del poder  y dominación que  se esconden atrás de la organización del trabajo y  que terminan por producir accidentes de trabajo además de otras consecuencias para la salud del trabajador. Buscase incluso, realizar una lectura de cómo la objetividad y la subjetividad de los trabajadores se encuentra capturada por el modo de producción capitalista, tornando la mobilización política y el ejercicio de la ciudadanía menos accesible a la conciencia. Verificase como consecuencia la falta de respeto a los derechos y la imposición de la violencia a los trabajadores, que pasan a ver en el trabajo un lócus de degradación de las relaciones y sufrimiento. Nótese que el accidente de trabajo es un importante indicador de la opresión y violencia, denunciando la brutalidad del capitalismo introducida en las empresas a través de la organización del  trabajo, que con estrategias manipuladoras intenta engañar los trabajadores, tornándoles “colaboradores” pasivos y enajenados.

Palabras-claves: salud del trabajador; accidente de trabajo; subjetividad.

 

Abstract

This article makes a brief analysis of the contemporary labor world, taking into account the power and domination strategies which are concealed behind labor organization and which result in labor accident as well as in other consequences on worker’s health. It is also intended to carry out a reading of how worker’s objectivity and subjectivity have become captured by the capitalist production mode, thus leading them to become less bound to consciousness, to political mobilization and to the exercise of citizenship. As a consequence, one can verify the disrespect to labor rights and the violence inflicted on them who, in turn, tend to see work as a locus of suffering and of relationship degradation. It is observed how labor accident is an important indicator of oppression and violence, denouncing the brutality of capitalism inserted in companies through labor organization which by means of manipulative strategies tries to befool workers, turning them into passive and alienated “collaborators”.

Key words: worker’s health; labor accident; worker’s subjectivity.

 

O mundo do trabalho contemporâneo e sua implicação na subjetivação dos trabalhadores

 

Vivemos em um mundo capitalista. Esta parece ser uma constatação óbvia. No entanto, desta afirmação aparentemente sem grandes pretensões podemos extrair uma realidade complexa, na qual estamos mergulhados cotidianamente sem que nos atentemos para as suas implicações. É partindo deste pressuposto, o capitalismo, que discorreremos aqui sobre a situação do mundo do trabalho, suas implicações para os trabalhadores, as relações de trabalho e como a organização do trabalho pode adquirir uma força determinante na vida e na saúde do trabalhador, sobretudo na questão do acidente do trabalho. Veremos em seguida, como a objetividade e a subjetividade do trabalhador foram totalmente capturadas pelo capital e o que os próprios trabalhadores pensam sobre o acidente de trabalho.

O trabalho ocupa posição central na vida das pessoas. É através dele que o sujeito é reconhecido na sociedade e na família, isto é, constitui sua identidade, além de ser o ‘lócus’ onde cada indivíduo atualiza sua condição reconstruindo cotidianamente seu lugar no mundo. No trabalho, o sujeito deveria ter possibilidades de criação, reinvenção, construção coletiva, prazer, realização de seus desejos e produção de novos anseios.

Embora haja uma coletividade nos modos de produção, o trabalhador é desprovido dos lucros, expropriado de sua própria produção. Isto aponta para o primeiro fator contrário à realização dos trabalhadores: eles não são donos de sua produção, seus investimentos são na direção do fora de si mesmos, as expectativas não são deles, trabalham para cumprir metas que não são estipuladas por eles, para atender a um desejo que não lhes pertence. 

O mundo do trabalho capitalista não é algo estável, tem apresentado múltiplas faces, dependendo da época, foi modificado e influenciado por diversas teorias e linhas de pensamento como o taylorismo, o fordismo, o toyotismo e, mais recentemente, os novos modelos de gestão, baseados na excelência e qualidade total. Alguns autores falam de uma crise do capitalismo na era atual. Outros citam importantes mudanças e outros ainda, de uma estagnação mundial. Todos esses processos provocam impactos no mundo do trabalho e na vida dos trabalhadores.

Primeiramente, veio a racionalidade do taylorismo que consistia em um conjunto de gestos de produção concebidos, preparados e vigiados pela direção da empresa. O principal objetivo era a redução do saber operário complexo aos elementos mais simples. A conseqüência disso era a total homogeneização e atomização das técnicas de produção, dispensando o saber-fazer dos operários (segredos de ofício). Os trabalhadores, foram desapropriados de sua produção e de seu modo de produzir. É a anulação do seu desejar sobre o trabalho a redução de sua potencialidade criativa, a total mecanização, coisificação. O sujeito agora é objeto. Funciona como uma máquina, executando comandos sem sentido e sem possibilidades de pensar. Nada de desejar, nada de inventar, nada de questionar, nada...cabeça vazia....era assim que o taylorismo visualizava o trabalhador: uma peça, ou uma máquina, que pode ser controlada, acionada por botões, acelerada, ritmada, precisa e desativada ao fim do dia, ou descartada quando não servisse mais.

Posteriormente, entrou a função do fordismo, na modelação da subjetividade dos trabalhadores contemporâneos. Seu método consiste em

 

uma forma particular do processo de trabalho mais adequada ao emprego de uma mão de obra com diferentes especificações, em que o fluxo das partes e dos produtos intermediários passou a ser realizado por máquinas, das quais os trabalhadores de montagem se encontram agora distribuídos em postos fixos (Lópes, 2000 p.246).

 

Dessa maneira, o que passa a determinar o sentido da produção agora são as máquinas. Elas ditam os ritmos, impõem posturas corporais, determinam o número de trabalhadores necessários, entre outras coisas. Todo o processo de produção agora é comandado pelas máquinas. É a linha de produção, a linha de montagem, a produção em série. Inventou-se aí, a escala de produção mundial. O fordismo almejava construir um novo padrão de consumo da classe trabalhadora e não consistia somente numa nova teoria administrativa, e sim numa tecnologia de produção de um novo modelo civilizatório, vinculando os paradigmas da produção a novos padrões de consumo. Isto significava amarrar as idéias de produção em massa=consumo em massa, expressão esta sugerida por Lopes (2000).

Antunes (2000) sinaliza para as conseqüências do toyotismo no mundo do trabalho, isto é, a necessidade de o trabalhador operar várias máquinas ao mesmo tempo. Em sua opinião, a empresa respondia à crise financeira com o aumento da produção sem o aumento do número dos trabalhadores e importando técnicas de gestão dos supermercados americanos em que se devia produzir o necessário no melhor tempo (método kanban). Por essa razão, diz o autor, a ocidentalização do toyotismo significa uma verdadeira aquisição do capital contra o trabalho, pois as transformações por ele engendradas no processo produtivo levaram ao desemprego estrutural mundial. Ele alerta para o fato de o toyotismo se apresentar como sendo mais consensual, mais envolvente, mais participativo do que os modelos anteriores, se constituindo, por essa razão, como mais manipulatório.

Todas essas questões levaram à criação de um novo tipo de operário, com poucas capacidades manuais, mais flexibilidade, rapidez, resistência emocional, atitudes maquinais, docilidade, passividade, qualidades imprescindíveis à realização do trabalho. Esse trabalhador passou a necessitar de uma adaptação psico-física, que racionaliza os modos de vida, as percepções cognitivas, a experiência erótica e a sexualidade das classes trabalhadoras em função das necessidades exclusivas do trabalho e da economia produtiva. É a era da nova ética puritana coletiva, que visava adequar os valores aos novos padrões de civilização da burguesia americana (Lopes, 2000).

Antunes (2000) coloca que

...há uma processualidade contraditória que, de uma lado, reduz o operariado industrial e fabril; de outro, aumenta o subproletariado, o trabalho precário e o assalariamento no setor de serviços. Incorpora o trabalho feminino e exclui os jovens e os mais velhos. Há, portanto, um processo de maior heterogeneização, fragmentação e complexificação da classe trabalhadora (p. 50).

 

Souza (2003) aponta para a submissão das práticas sociais à lógica do capital. Segundo ele, o capital ao subordinar as funções de reprodução social ao seu imperativo de acumulação, eleva a competitividade, e precariza as relações de trabalho além de degradar a natureza. Este autor alude a uma crescente crise do capital devido às quedas nas taxas de lucros o que faz com que ele tente se recompor modificando suas bases de gestão e tecnologia. Desta forma, o capital tenta se estruturar sem tocar nas bases essenciais de seu modo de produção. O que ele busca é a reorganização do regime de acumulação taylorista-fordista, acrescentando mais flexilibidade do trabalho e da produção desmontando o Estado do Bem Estar Social e visando o controle do aparelho estatal para a retomada das condições de acumulação (Souza, 2003).

Nesse sentido, o mesmo autor critica os teóricos do capital humano, bem como a ação do Estado que acaba por atender aos interesses do capital e do empresariado, a medida em que, socializa os gastos com a educação, formando recursos humanos para as empresas privadas, com base numa ideologia meritocrática que transfere ao indivíduo a responsabilidade pelo seu sucesso ou fracasso no mercado de trabalho e até mesmo pelo eventual desemprego.

            Portanto, de acordo com este mesmo autor, o modelo de economia educacional contribui para o aumento da mais-valia relativa inserindo ciência e tecnologia no processo de trabalho e de produção e investindo na qualificação do trabalhador. Propaga-se a idéia de investimento em capital humano como única forma de garantir a empregabilidade, a manutenção de postos de trabalho e a garantia de renda. Assim, o indivíduo trabalhador torna-se responsável pelo seu próprio desemprego. As teorias da qualidade total, de flexibilização e polivalência apenas vêm confirmar a subordinação da educação à lógica da exclusão. Busca-se, então, o desenvolvimento da motivação nos trabalhadores, para que estes possam, em condições favoráveis, exercerem a criatividade, como uma forma de voltar a incorporar o seu saber no processo de valorização do capital.  

Antunes (2000) aponta para as mudanças ocorridas pela inserção da tecnologia, da automação, da robótica e da microeletrônica na produção. Segundo ele, o fordismo, o taylorismo e o toyotismo convivem agora com outros processos de trabalho emergentes, como o neofordismo, o neotaylorismo o pós-fordismo. O autor ressalta que “o cronômetro e a produção em série e de massa são ‘substituídos’ pela flexibilização da produção, pela ‘especialização flexível’, por novos padrões de busca de produtividade, por novas formas de adequação da produção à lógica do mercado” (p. 24).

Ainda segundo este autor, há uma tendência a eliminar a alienação do trabalho através da recusa da produção em massa e aumento de uma flexibilidade, buscando a descentralização produtiva em médias e pequenas empresas, por ele denominadas artesanais. No entanto, mesmo esta chamada acumulação flexível ainda é uma forma própria do capitalismo e mantém suas bases de produção, pois é voltada para o crescimento, se apóia na exploração do trabalho vivo e tem uma intrínsica dinâmica tecnológica e organizacional. Isso levou a um retorno da superexploração do trabalhador através da geração de um excedente de força de trabalho e ao crescimento do setor informal além do retrocesso da ação sindical.

 Todo esse ideário levou a uma degradação do mundo do trabalho, que passou a ser não mais locus de prazer e satisfação, mas lugar de dor e sofrimento. A fantasia, a criatividade, a inventividade, a produção desejante ficou totalmente subordinada às finalidades do capital. Àqueles que se opõem, é reservado o lugar de exclusão, de marginalidade. O trabalhador ou foi coisificado, transformado em mero objeto mecânico que executa comandos sem pensar, ou seu desejo, seu pensar, foi tomado pela lógica do capital, apaziguado, adestrado e posto a serviço deste.

Corsi (2003) discorre sobre os fatores que levaram a um aumento da ofensiva burguesa contra os trabalhadores na época atual, elevando a taxa de exploração da força de trabalho. Esses fatores seriam a reestruturação produtiva, a desregulamentação do mercado, a crise econômica, a elevação do desemprego, a segmentação da classe trabalhadora e a burocratização dos partidos dos trabalhadores e dos sindicatos. Segundo este autor, a conseqüência mais desastrosa da reestruturação produtiva foi a formação de um enorme contingente de excluídos e de desempregados.

O capitalismo buscou a reorganização e reestruturação da produção através de locais mais amplos e desregulamentados de acumulação. Sendo assim,

 

A constituição de oligopólios internacionais em importantes setores, a ampliação da abertura das economias nacionais, a formação de mercados regionais, a utilização intensa de novas tecnologias, a organização de processos produtivos mais flexíveis, a redução da força de trabalho empregada, a introdução de vínculos variáveis e relativamente frouxos entre o trabalhador e a empresa, a realocação espacial entre alguns países de vários segmentos produtivos e a marginalização de inúmeras regiões caracterizam o atual momento. Essas mudanças se deram sob a égide do neoliberalismo, que se tornou o pensamento hegemônico (Corsi, 2003).

 

Corsi (2003), ainda coloca a idéia de uma estagnação da economia brasileira dentro de um contexto amplo de crise econômica social e política que atinge a sociedade capitalista desde os anos 70. Dentro desta perspectiva,

 

Boa parte dos países endividados como o Brasil, entrou em um período de estagnação. A adoção de políticas recessivas, inspiradas ou impostas pelo FMI, levou as economias desses países a girar em torno do pagamento de dívidas externas, do combate à inflação e da crise fiscal do Estado. O emprego de políticas recessivas, baseadas no corte do gasto público, no arrocho dos salários, no corte do crédito, no aperto monetário e na desvalorização da moeda, resultou em estagnação econômica e agravamento da inflação e da crise fiscal do Estado, embora melhorasse a situação das contas externas, permitindo o pagamento dos juros das dívidas (Corsi, 2003).

 

Deste modo, a estagnação econômica deve-se à dependência financeira desses países ao capital estrangeiro, o que determinou um fim dos projetos nacionais de desenvolvimento que buscavam a autonomia. Este mesmo autor continua sua análise constatando que, no Brasil, após a implantação do plano real, em 1994, pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, houve um crescimento da economia nos três primeiros anos, principalmente na indústria. Mas depois o crescimento foi revertido e o declínio foi vertiginoso. “A situação da classe trabalhadora também se deteriorou em virtude do aumento do desemprego, decorrência do baixo nível de crescimento econômico e da reestruturação produtiva. Houve o fechamento de unidades produtivas, aumento do processo de terceirizações, racionalização da produção elevação da importação de máquinas e equipamentos e enxugamento do quadro de funcionários” (Corsi, 2003).

Como vimos, houve impactantes mudanças e o capitalismo sofreu graves crises o que acaba por transformar os processos produtivos e, mais ainda, influenciar de maneira profunda a subjetividade dos trabalhadores. Hoje, podemos dizer que a eficiência do processo de produção e de valorização, encontra-se assentado na capacidade do capital de forjar uma subjetividade operária interativa. Isto se dá pelo agenciamento dessa subjetividade, tornando-a aderente às finalidades do capital. Neste sentido, vemos trabalhadores operários sendo denominados de colaboradores, sendo preparados para o trabalho em equipes, para a interação, para a expressão, tudo com a finalidade de cooperação (com o capital).

 

 

O trabalhador, sua identidade e o sentido do trabalho

 

O nome de uma pessoa não parece ser suficiente para que ela seja reconhecida pelos outros. Nem mesmo sua filiação, a história de sua família e do lugar onde nasceu bastam para a identificar. Pouco é também a descrição da estrutura física, do corpo e da aparência para a individualização de uma pessoa. Os seres humanos empreendem uma busca pela identidade através de um grupo social, em que se possa ser, concomitantemente, identificado como pertencente a um coletivo e singularizado. “Num grupo assim, pode-se supor, cada indivíduo reconhece no outro um ser humano e é assim reconhecido por ele – sozinhos certamente não podemos ver reconhecida nossa humanidade, conseqüentemente não nos reconhecemos como humanos” (Ciampa, 1990, p.38).

De acordo com este autor, as relações sociais são influenciadas sobremaneira pela posição que o indivíduo ocupa no mercado de trabalho e as identidades refletem a estrutura social. O desenvolvimento da identidade não depende apenas da subjetividade, mas também da objetividade. “Todos sabemos a importância que o trabalho tem na nossa sociedade. Nossa inserção no mercado de trabalho quase sempre sela um destino, é um componente forte na configuração de uma identidade” (Ciampa, 1990, p. 232).

Segundo Silva (2002) na situação de trabalho estão contidas todas as três dimensões humanas, a psíquica, a social e a racional. É no trabalho que o homem estabelece relações com os outros, se diferenciando e reconhecendo sua incompletude, sua necessidade do outro e do reconhecimento alheio, além de colocar em interação as três dimensões acima citadas. A formação da imagem de si se dá na relação homem-trabalho, dependendo da colaboração de três elementos: “o conteúdo significativo em relação ao sujeito, o conteúdo significativo em relação ao objeto e o conteúdo significativo ligado às relações que o sujeito estabelece fora do trabalho” (p.102). Sendo assim, esta autora pondera que causa importante impacto sobre a imagem pessoal do trabalhador o sucesso ou o fracasso no trabalho, posto que é deste que o sujeito forja uma identidade social e fortalece a imagem de si.

 

Há, então, inerente ao homem, uma necessidade de criação e auto-criação que está a todo momento implicando transformação, a qual contém em seu bojo, um misto de prazer e de dor, pois, ao mesmo tempo em que surge o novo como obra de criação, tem-se que abandonar o velho, uma estrutura que fazia parte de sua própria constituição (Silva, 2002, p. 37).

 

A autora, com base na Psicodinâmica do Trabalho (Dejours, 1992) afirma que o trabalho é o lócus de ressonância simbólica quando possibilita ao indivíduo realizar investimentos simbólicos, isto é, transferir para este as suas inquietações primitivas, suas angústias, o que desencadeará o processo de sublimação pela criatividade e imaginação. Isto, porém, só ocorrerá, adverte ela, se a organização do trabalho não for excessivamente rígida (Silva, 2002, P. 103-105).

 

 

Como a organização do trabalho pode causar impactos na saúde do trabalhador

 

Paraguay (2003) conceitua organização do trabalho, de acordo com o Ministério do Trabalho, “pelas modalidades de repartição das funções entre operadores e destes com os demais componentes do sistema de trabalho (meios e materiais de trabalho); a organização do trabalho define quem faz o que, como e em que tempo”. Isto significa que a organização do trabalho compreende os aspectos de conteúdo, alocação de pessoas em relação às tarefas reais, ou seja, a administração e distribuição das pessoas, as normas de produção, os modos operatórios relacionados às exigências temporais, de ritmo, de pausas, horários e de prazos. Ela alerta para o fato de que sempre deve ser considerada a existência de um trabalho prescrito (ideal, proposto oficialmente, projetado) e um trabalho real (concreto, feito na prática).

Já Silva (2002) afirma, a partir de uma leitura dejouriana que a saúde no trabalho é uma conquista dos trabalhadores influenciada pela história singular de cada um. Porém, a organização do trabalho, por compreender o conteúdo das tarefas e as relações humanas, atinge não só o corpo, mas também sua afetividade. “É da organização do trabalho, portanto que resultam as pressões que atingem o equilíbrio psíquico do trabalhador”. Isto porque, quando a organização do trabalho é extremamente rígida e imposta, não permite ao sujeito trabalhador a descarga de energia necessária ao equilíbrio físico e mental (p. 84-85).

No entanto, não podemos esquecer que há uma relação de poder desigual entre os empresários, detentores dos meios de produção e os trabalhadores, que vendem sua força de trabalho.  Como bem coloca Silva (2002) é uma relação conflituosa e que permite aos empresários uma ascendência sobre os trabalhadores, a expropriação do seu trabalho, de sua vontade e do seu desejo. Sendo assim, só resta ao trabalhador assujeitar-se, submeter-se, situação que lhe causará um sofrimento e que pode levar a um quadro de auto-desqualificação e de perda da identidade.  Ainda segundo esta autora, os trabalhadores não se rebelam porque a organização (empresa) atua na base de suas subjetividades, atingindo diretamente o inconsciente, levando-os a acreditarem-se participantes de um projeto comum, legítimo, único. As falhas nas relações humanas decorrentes do individualismo, da falta de solidariedade e da captura da subjetividade do trabalhador pelo modo de vida capitalista, abrem brechas para que o poder das organizações se infiltre e ganhe mais força, dominando e submetendo os trabalhadores ao capital.

O problema disso é que, os indivíduos passam, eles mesmos, a acreditarem na ordem dominante e a reproduzirem-na. Ao serem capturados em seus conteúdos mais profundos, num contexto de produção que é baseado no capitalismo, há um enfraquecimento do potencial de luta dos trabalhadores que chega, inclusive a subverter os seus valores: os próprios trabalhadores, cada vez mais, se encaram como concorrentes. A desavença a partir de então é desviada da empresa para o colega de trabalho. Há, com isso, a produção de um individualismo no ambiente de trabalho que atinge a esfera das relações pessoais (Silva, 2002, p.60).

 

Ora, conforme diz Silva (2002), além da situação de extrema desigualdade social na sociedade capitalista com todas as conseqüências que isto traz, o que causa sofrimento ao indivíduo trabalhador é a carga psíquica oriunda do confronto entre o seu desejo e a injunção do empregador que está depositada na organização do trabalho. A saúde do trabalhador então, depende dele ter assegurado o direito a ter desejo, a exercer sua vontade e afetividade.

Contudo, no mundo onde se busca a qualidade total, as potencialidades humanas só cabem na organização se estiverem em consonância com os interesses do capital. Tudo deve funcionar de maneira a mais perfeita possível, inclusive o homem. Este não deve adoecer nem fraquejar, “deve se desafiar constantemente, ser forte, responsável, autônomo. Como recompensa receberá gratificações materiais e simbólicas individualizadas.” (Silva, 2002, p. 72).

Essa ideologia leva o indivíduo a uma despersonalização, despedaçamento do eu, perda da auto-referência, da identidade e à uma aderência total aos objetivos do capital. A conseqüência disso é que o sujeito passa a esconder o seu mal-estar, suas dores seu sofrimento ou sua doença e, até mesmo o acidente de trabalho, para ter assegurado o seu lugar de homem excelente. “A associação doença-fraqueza favorece a emergência de uma acusação social ao indivíduo doente: não seria essa doença um disfarce de sua preguiça?” (Silva, 2002, p. 98). O mesmo se pode aplicar ao acidente de trabalho, só que com uma diferença: as perguntas que se fazem primeiro são: não foi por imprudência do trabalhador? Este não agiu de maneira insegura, causando o acidente?

 

 

O acidente de trabalho: a violência cotidiana que suprime os direitos dos trabalhadores

 

A lei nº 8213 de 24 de julho de 1991 regulamentada primeiramente pelo decreto 357 de 7 de dezembro de 1991 e depois revogada pelo decreto nº 611, de 21 de julho de 1992 considera acidentes de trabalho os seguintes eventos: o acidente tipo ou macrotrauma, caracterizado por ser evento único bem definido no tempo e no espaço, que acarreta lesões físicas ou perturbações funcionais, resultando em morte ou incapacidade para o trabalho; as doenças profissionais denominadas ergopatias, tecnopatias ou típicas que são produzidas ou desencadeadas pelo exercício do trabalho peculiar a determinadas tarefas em decorrência de risco específico direto; as doenças do trabalho também chamadas mesopatias ou moléstias profissionais atípicas, que são aquelas originadas, desencadeadas ou agravadas por condições especiais de trabalho. Também são abrangidas as doenças provenientes de contaminação acidental no exercício do trabalho e as doenças endêmicas, quando contraídas por exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho. O quarto evento também considerado como acidente de trabalho é o de trajeto ou de percurso, que ocorre no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, seja qual for o meio de locomoção.

É imprescindível o estabelecimento do nexo causal entre o acidente e o exercício do trabalho em todas as situações citadas acima, mesmo quando se admite a existência de fatores extralaborais, chamados de concausas, que possam ter contribuído para o surgimento ou agravamento da doença ou lesão (Carmo, et al., 2003).

A legislação prevê o pagamento de seguro por acidentes de trabalho, desde que seja efetuada a notificação do acidente conforme estabelecida pela mesma lei já citada acima.

O empregador é obrigado, sob pena de multa a comunicar à Previdência Social a ocorrência de acidente do trabalho através da emissão da Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), até o primeiro dia útil seguinte ao da ocorrência e de imediato à autoridade policial competente, em caso de acidente fatal (Carmo, et al., 2003, p. 438).

 

Quanto à assistência do acidentado, conforme cita Carmo et al. (2003), cabe aos profissionais da saúde em geral, não só oferecer os cuidados médicos, mas também o papel de ser o mediador do trabalhador quanto aos seus direitos sociais. Isso significa que o médico deve reconhecer a existência de nexo causal entre o acidente e o trabalho, respondendo a um questionário específico incluído na CAT.

 

Infelizmente, ainda são comuns os casos em que o profissional que atende o acidentado, seja por desconhecimento, por temores injustificados ou por razões menos nobres, recusa-se a certificar seu ato. Além das implicações éticas desta recusa, é importante que se ressaltem as sociais, econômicas, trabalhistas e de prevenção de novos casos, uma vez que a omissão do registro desses deixará de acionar ações de vigilância (2003: 438).

 

Por outro lado, a Previdência Social, apesar de ser a principal fonte de dados estatísticos, só registra os acidentes que foram notificados através da CAT. No entanto, sabe-se através de outras fontes (principalmente pesquisas) que há uma significativa sub-notificação, isto é, acidentes que ocorreram e não foram comunicados ao INSS.

 

O sub-registro tende a aumentar em momentos de recessão econômica, em função do maior número de trabalhadores desempregados ou engajados no mercado informal, e mesmo dentre os segurados contemplados pelos direitos acidentários, diminui a pressão para o registro de eventuais acidentes (Carmo et al, 2003 p. 439).

           

            Percebe-se, portanto, que os dados da Previdência não abarcam todo o universo dos acidentes de trabalho. Isso porque os órgãos públicos como o Sistema Único de Saúde (SUS) não cumprem ainda plenamente seu papel estipulado pela lei.

 

Apesar da obrigação legal do Sistema Único de Saúde (SUS) executar ações de vigilância epidemiológica em saúde do trabalhador, conforme estabelecido no Art. 199 da constituição Federal e Art. 6° da Lei N 8.080 de 19 de setembro de 1990, ainda não se tem, em nível dos serviços de saúde, um sistema organizado de informações sobre acidentes e doenças do trabalho (Carmo, et al, 2003, p. 444).

 

Acrescente-se ainda, segundo este mesmo autor, que o aumento da sub-notificação pode ser explicada pelas mudanças ocorridas na legislação, como a que autoriza as próprias empresas a notificar, receber a notificação e atender aos acidentados, além da transferência ao empregador da responsabilidade pelo pagamento dos primeiros quinze dias de afastamento por acidente de trabalho. Uma outra alteração que contribui para a sub-notificação é o fim do pagamento diferenciado para os hospitais da rede privada que atendiam acidentados do trabalho.

Quanto à causalidade do acidente de trabalho, historicamente tem prevalecido a culpabilização do indivíduo. De acordo com Carmo et al. (2003) a idéia de que os acidentes são causados por atos e condições inseguras, juntamente com a teoria da propensão ao acidente têm sido corroboradas pelos órgãos do Ministério do Trabalho, através de publicações e cursos de prevenção de acidentes em que se focaliza o sujeito trabalhador.

Nas publicações(...)surgem diversas definições de atos inseguros: aquele que o trabalhador faz sem observar certas regras de segurança, maneira como as pessoas se expõem consciente ou inconscientemente a riscos de acidentes, causas que residem exclusivamente no fator humano (2003:440).

 

Por outro lado, a falta de investigação mais apurada sobre o acidente de trabalho e de um questionamento dos trabalhadores sobre essas concepções discriminatórias faz com que elas prevaleçam ainda hoje. Sendo assim, a idéia de prevenção vigente é a de que se deve colocar o indivíduo certo para executar determinada tarefa, eliminando aquele que não se adapta à função. Na opinião de Carmo et al., (2003) essa ideologia não difere das determinações do Regulamento Geral para a Higiene do Trabalho do período fascista, que obrigava os médicos a verificarem se os trabalhadores, antes de serem admitidos, possuíam condições especiais para resistirem à ação de agentes nocivos aos quais seriam expostos. Portanto, essa atribuição da responsabilidade ao sujeito e a conseqüente desobrigação da empresa, é uma grave conseqüência negativa nas políticas de prevenção do acidente de trabalho. Uma outra seria que, atribuindo o acidente a uma falha do trabalhador, há um impedimento para que seja feita uma descrição do ocorrido em termos factuais, segundo este autor.

Carmo et al. (2003) cita diversas teorias que foram concebidas para explicar a causalidade dos acidentes de trabalho, como as teorias do puro acaso, da propensão tendenciosa, da propensão desigual, da propensão ao acidente, do ajuste/estresse, da acidentabilidade, do alerta, do dominó, enfim, uma série de idéias que, basicamente, enfocam o trabalhador, generalizando as noções de ato inseguro e condições inseguras.

Para que se busque uma mudança efetiva nessa situação, é imprescindível que estas noções sejam abandonadas. Que a investigação dos acidentes seja feita através de um método que leve em conta todos os fatores envolvidos, principalmente a organização do trabalho. Que o trabalhador seja incluído na construção do saber. Que se busque um resgate da subjetividade destes e uma conscientização para a cidadania. Portanto, para que sejam reconhecidos os direitos sociais dos trabalhadores e para que o trabalho não seja um sofrimento tão intenso, é necessário que se pense mais além das medidas de prevenção e de segurança no trabalho, e que se dê passagem para que o desejo dos trabalhadores volte a manifestar-se.

 

Cenas da vida cotidiana: a experiência na voz de quem a vive

 

As histórias contadas a seguir foram recortadas de uma experiência de estágio curricular em saúde do trabalhador, realizada durante a graduação do curso de psicologia da autora. O estágio consistia em estudo dos acidentes de trabalho ocorridos em uma região do interior do estado de São Paulo, buscando um contato com o mundo do trabalho através da fala dos trabalhadores. Desta forma, eram realizadas entrevistas semi-abertas com trabalhadores acidentados na sala de espera do setor de ortopedia de uma Santa Casa de Misericórdia da cidade em questão. As entrevistas eram semi-dirigidas para garantir maior espontaneidade e, concomitantemente averiguar alguns itens básicos para a posterior análise. Ao mesmo tempo em que se permitia um espaço para a expressão livre dos trabalhadores acerca de suas vivências, estes eram também orientados e alertados quanto aos seus direitos, o que se configurava como uma oportunidade de intervenção. As entrevistas eram posteriormente analisadas e discutidas em supervisão, fornecendo dados para publicações.

Destas entrevistas foram selecionadas algumas para a ilustração deste artigo. Por uma questão de espaço, não são citadas todas as informações contidas nas entrevistas, privilegiando-se apenas aspectos considerados essenciais para esta breve reflexão. Buscou-se preservar as palavras e expressões usadas pelos trabalhadores, para não subtrair, pelo menos nesta oportunidade, o seu direito a dar voz à sua experiência singular. 

Cena Um: Carlos , 23 anos, solteiro, é ajudante geral em um depósito de materiais de construção. É registrado há oito meses.Trabalha oito horas por dia, com intervalo de duas horas de almoço. Ele sofreu um acidente de trabalho quando estava descarregando, juntamente com outro funcionário, mais de cento e vinte batentes de portas de madeira com cerca de trinta kilos cada. Ele alega que estavam com pressa, porque tinham de acabar logo o serviço. Ele sentiu então uma dor aguda no ombro direito. Continuou trabalhando por alguns dias, até que seu braço direito ficou imobilizado. Ele sentiu muitas dores, e auto-medicou-se em casa para não ir ao médico. O acidente não foi registrado, e Carlos desconhece seus direitos e até mesmo o que é a CAT. Segundo ele, quando falou para os colegas que estava com dores, eles “zoaram”, tiraram sarro, disseram que ele não estava agüentando o trabalho, porque é muito fraco. Por ser o funcionário mais recente na empresa, ficou com medo da demissão e por isso escondeu as dores que sentia por alguns dias. “a gente precisa trabalhar, né... então... eu trabalho desde os doze anos.”

Neste caso, percebe-se algumas questões problematizadoras da organização do trabalho, como a sobrecarga de trabalho e o ritmo acelerado denunciado pela palavra “pressa”. Mas o que chama mais a atenção é que o trabalhador esconde seu acidente, tenta resolver sozinho sem procurar auxilio médico até que não suporta mais a dor. Percebe-se ainda o medo do desemprego e a discriminação que é vivida por aquele que sofre acidente dentro do seu próprio grupo de trabalho, concordando com o que já foi dito pelos autores citados acima, sobre a culpabilização do indivíduo pelo acidente. Outro fato extremamente relevante é o desconhecimento de Carlos sobre os seus direitos e a não notificação do acidente, confirmando o que já foi dito, sobre as estatísticas oficiais.

Cena Dois: João tem 47 anos é trabalhador rural há vinte anos, segundo ele por falta de opção de outro trabalho. É registrado há cerca de cinco anos como cortador de cana em uma usina. Seu horário de trabalho é das sete da manhã às dezessete horas e dezoito minutos, com intervalo de uma hora para o almoço e meia hora para o lanche da tarde. De acordo com João, durante a safra da cana, ele trabalha direto com apenas uma folga por mês. Já na entre-safra, ele trabalha de segunda a sexta-feira. Seu salário é definido conforme a produção. Ele alega que chega a cortar quinze toneladas de cana por dia.

Na empresa, há incentivos para quem corta mais cana. Segundo o João, “eles dão televisão e até geladeira...” E aqueles que recebem os prêmios, são os “primeiros lugares do ônibus” também são os primeiros a serem contratados durante as próximas seleções.

João estava cortando cana no meio da tarde, quando sentiu uma dor intensa no braço esquerdo. Ele continuou trabalhando até o final do expediente. Ele não disse nada sobre a dor. No dia seguinte, seu braço já estava inchado. Ele comentou com o fiscal, que o colocou para fazer um serviço mais leve, isto é catar a cana que cai dos caminhões. “Eu senti muita dor nas costas, no corpo e no braço, tomei diclofenaco e fiz umas compressas, mas não adiantou.” Doze dias depois, o João foi ao posto médico do bairro, com o braço já sem movimentos e muito inchado. Este acidente não foi comunicado ao INSS.

Aqui, verifica-se uma gama complexa de problemas que acompanham o trabalhador rural, mais especificamente os cortadores de cana, como a remuneração por produção e os incentivos, que os levam a trabalhar exaustivamente até o esgotamento físico. Outros ainda há, como a ausência de folgas e a falta de atendimento médico imediato para aqueles que se machucam. Mas o que chama a atenção, é a desconsideração com a dor alheia, quando ele conta para o fiscal e este o coloca para realizar um trabalho “mais leve” e o tempo em que João fica doente sem atendimento médico, escondendo seu sofrimento. Novamente, percebemos a falta de apoio do grupo social para aquele que sofre o acidente, a idéia de que o problema é do indivíduo e não responsabilidade da empresa.

Cena Três: Anderson é um jovem de 25 anos e denomina-se auxiliar de mecânico e montador em uma empresa que fabrica e monta máquinas para silos, tulhas, entre outras. Diz que realiza trabalho de montador, mas seu registro na carteira é de auxiliar. Ele trabalha em turnos, que se alteram em um período de dias não muito determinado. O turno diurno é das 7h00 às 17h00 com uma hora de intervalo para o almoço. O da noite é das 17h00 às 02h48 também com intervalo de uma hora para o jantar. Eles fazem horas extras para compensar o sábado, quando não trabalham. Segundo ele, a empresa possui funcionários registrados, mas costuma contratar outros através de empreiteiros em várias cidades da região.  Ele afirma que seu trabalho “é muito perigoso, porque é muito alto, já morreram dois caras lá. Eu mesmo já me machuquei na dobradeira, a máquina prendeu o meu dedo da mão esquerda. É muito risco, sempre cai coisas no pé.” Anderson diz que trabalha com chapas metálicas e passa muitas horas dentro de um barracão quente, com muito barulho e poeira.

O acidente de Anderson ocorreu durante o trajeto para sua casa. Ele estava de moto e corria, quando esta derrapou na areia e ele caiu. Ele sofreu uma luxação no joelho esquerdo, que formou uma bolsa de sangue e provavelmente necessitará de uma cirurgia.

Quanto ao registro do acidente, ele alega que não o fez para não “tirar atestado”. “Eu não pensei que era grave, porque na hora não doeu, só à noite é que começou a inchar e doer. Atestado não é bom, porque quando vai demitir, a primeira coisa que eles vêem é se a pessoa tem atestado. Eles já me demitiram outra vez, porque eu tinha atestado de uma cirurgia.” Ele diz que pretende trabalhar mesmo machucado. Fala que seus colegas “zoaram” dizendo que ele se machucou porque queria ficar uns dias em casa.

A estratégia da empresa para que Anderson seja menos remunerado é registrá-lo como auxiliar(função hierarquicamente de menor qualificação). Além disso, entende-se que a troca de turnos não é realizada em um período de tempo razoável, prejudicando assim o equilíbrio psico-físico dos trabalhadores. Pela sua fala, dá para inferir irregularidades nos contratos de trabalho. Outro dado relevante que surge é a estratégia de seleção excludente que é realizada nas empresas, utilizando como critério a presença ou não de atestados médicos. Anderson confirma o que foi dito antes pelos dois entrevistados acima sobre a não notificação e a falta de apoio e compreensão dos colegas de trabalho.

Última Cena: José tem 35 anos, é movimentador de cargas em uma indústria. Ele foi contratado pelo sindicato, há mais ou menos um ano e meio. O seu trabalho consiste em carregar e descarregar caminhões com mercadorias diversas. Estas podem ser desde alimentos até agrotóxicos ou veneno para grãos, produtos de alta toxidade. Ele trabalha em turnos de oito horas, e que se revezam a cada vinte dias. Os turnos são das 7h00 às 15h00, das 15h00 às 23h00 e das 23h00 às 7h00. O intervalo é de uma hora para almoço no primeiro turno, uma para jantar no segundo turno e uma para sopa, no terceiro turno. Durante a safra, há apenas uma folga a cada quinze ou trinta dias, conforme o movimento.

Ao ser questionado sobre como aconteceu o A.T ele responde “foi simples, fui erguer a tampa da carreta e aí deu uma marcada, aí aconteceu. Nós tava em três, mas eu tava olhado para o outro lado, aí a tampa da carreta prensou o meu braço”.Perguntado sobre porque estava olhando para o outro lado, ele diz que um outro colega o havia chamado, para ajudar a fechar outra tampa. Ele declara que estavam com pressa e cansados.

O acidente ocorreu aproximadamente às 22h00 e o José trabalhou com o braço machucado até as 7h00 da manhã. Mesmo com o inchaço e a dor, ele não abandonou o serviço. Ele conta que comunicou ao encarregado sobre o acidente, mas este não deu maior atenção, apenas recomendou que ele fosse ao ambulatório e tomasse um remédio para a dor.

Segundo ele, era a sua dobra , ele tinha entrado às 15h00 e sairia somente às 7:00 da manhã. No dia seguinte, ele tentou trabalhar novamente, embora seu braço estivesse roxo e inchado. Porém ele não conseguiu, então por volta das 19h00 horas, foi liberado para ir ao médico.

Conforme o José, quando um funcionário se machuca lá é comum tomarem comprimidos, injeções e antiinflamatórios fornecidos pelo próprio ambulatório e continuarem trabalhando.

O A.T. não foi registrado, isto é, não foi aberta a CAT, pois eles esperam até saber qual o diagnóstico do médico e por quantos dias o trabalhador ficará sob licença para depois abrirem a CAT. Se o período de afastamento for inferior a 15 dias, a CAT não será aberta.

Na história de José, notamos vários fatores complicadores, que podem ter contribuído para o acidente de trabalho, como os turnos que mudam a cada vinte dias, prejudicando o equilíbrio homeostático do trabalhador, à medida em que este é obrigado a adaptar-se em pouco tempo com novo horário para alimentar-se, dormir e realizar demais atividades fisiológicas. A realização da dobra no turno para conceder a folga – além de ilegal, causa impacto direto sobre o organismo do trabalhador, pois o mesmo passa cerca de dezesseis horas realizando um trabalho pesado. O ritmo acelerado pode gerar sobrecarga e levar ao desgaste físico e mental.

Afora estas questões do âmbito da organização do trabalho mais precisamente, nota-se ainda a minimização ou negação do acidente, pelos colegas de serviço e pelo encarregado, o que pode ser uma estratégia de defesa coletiva, para não reconhecer a fragilidade diante da possibilidade de sofrer um acidente e a impotência perante uma organização do trabalho opressiva e exploradora.

E por fim, o não registro do Acidente no Ministério do Trabalho além de gerar a subnotificação prejudicando o trabalhador quanto aos seus direitos, omite o dado da Previdência Social e impedindo ações de fiscalizações e responsabilização do empregador.

Nota-se, conforme foi desenvolvido neste artigo a captura da subjetividade dos trabalhadores por estratégias pérfidas do capital, de tal maneira que eles próprios buscam a auto-superação diária para manterem seus empregos, por mais caracterizado que esteja um processo de exploração.

É desanimador perceber como os sujeitos passam a acreditarem na ordem dominante e a reproduzirem-na. O individualismo, a falta de solidariedade e de mobilização política prepara o terreno para que o capital exerça seu poder com mais força ainda, pois mina as relações interpessoais no ambiente de trabalho, levando à competição e discriminação. Os indivíduos passam a acreditar que a única saída é se aliar ao capital. Os modos de vida dos trabalhadores foram totalmente racionalizados de acordo com as necessidades do trabalho e da economia produtiva.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Antunes, R. (2000). Adeus ao trabalho?: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo, Brasil: Cortez, 7ª ed.

Batista, R. L. (2003); Araújo, R. [Orgs.]. Desafios do trabalho: capital e luta de classes no século XXI. Londrina, Brasil: Práxis.

Carmo, J. C. do et al. “Acidentes do trabalho”. En: Mendes, R. Patologia do trabalho (pp. 438-444). São Paulo:  Atheneu.

Ciampa, A. (1990). A Estória do Severino e a História da Severina: Um ensaio de Psicologia Social.São Paulo, Brasil: Editora Brasiliense, 2ª ed.

Corsi, F. L. (2003) “A economia brasileira na década de 1990: estagnação e vulnerabilidade externa”. En: Batista, R. L.; Araújo, R. [Orgs.]. Desafios do trabalho: capital e luta de classes no século XXI (pp. 22-43), Londrina, Brasil: Práxis.

Lopes, J. C. C. (2000). A voz do dono e o dono da voz. São Paulo, Brasil: Hucitec.

Paraguay, A.I.B.B. (2003). “Da organização do trabalho e seus impactos sobre a saúde do trabalhador”. In: Mendes, R. Patologia do trabalho (pp. 812-829), São Paulo: Atheneu.

Silva, M. A. S. M.e. (2002). Vida e Trabalho: o afastamento como uma das manifestações do sofrimento humano nas organizações. Tese. [Dissertação de Mestrado na Universidade Estadual Paulista]. Assis, Brasil.

Souza, J. dos S. (2003). “A ‘nova’ cultura do trabalho e seus mecanismos de obtenção do consentimento operário: os fundamentos da nova pedagogia do capital”. En Batista, R. L.; Araujo, R. [Orgs.]. Desafios do trabalho: capital e luta de classes no século XXI. Londrina, Brasil: Práxis.

Dobra, segundo os trabalhadores é quando eles trabalham por dois turnos seguidos para que os funcionários de um turno tenham a folga.

Grifo do autor.

Todos os grifos deste trecho são do autor.

Grifos do autor.

Todos os nomes são fictícios para preservar a identidade dos entrevistados.

 


Por favor firme nuestro libro de visitas

ISSN: 1870 - 350X

Psicología para América Latina está incorporada como revista en La BVS-ULAPSI (Biblioteca Virtual de la Unión de Entidades de Psicología), el portal de Revistas de Psicología-PEPSIC. La BVS cuenta con la participación de BIREME (Centro Latinoamericano y del Caribe de Información en Ciencias de la Salud) con participación de la OPS - (Organización Panamericana de la Salud) quien ofrece su metodología y Scientific Electronic Library On line (SciELO), como modelo de publicación electrónica de revistas.

Diseño y actualización: emotional.com.mx